quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Movimento Armorial

Por Magno Córdova
(junto à CMFL - Comissão Mineira de Folclore)

Texto publicado originalmente em Pesquisas Especiais Barsa Society. Rio de Janeiro: Caravelas Produções Editoriais. 2004.

O boi mandingueiro e o cavalo misterioso, de Gilvan Samico, reprodução extraída do livro Em Demanda da Poética Popular – Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.


O substantivo Armorial nos remete à arte heráldica, coletânea de brasões da nobreza de uma nação ou de uma província. Adjetivado, o termo representa um neologismo criado pelo escritor Ariano Suassuna para batizar o movimento artístico brasileiro que teve sua primeira aparição pública em princípios da década de 1970 na cidade de Recife, e do qual é considerado “mestre e mago”: o Movimento Armorial. Fundamentado a partir de um espaço-tempo bem definido – o nordeste rural e sertanejo do Brasil e os artistas que ali produziam -, o Movimento Armorial se revelou formalmente ao público no dia 18 de outubro de 1970. Na ocasião, o DEC - Departamento de Extensão Cultural - da Universidade de Pernambuco organizou na Igreja São Pedro dos Clérigos da capital do estado uma exposição de artes plásticas acompanhada do concerto de uma orquestra recém-criada: a Orquestra Armorial de Câmera de Pernambuco, órgão do Conservatório Pernambucano de Música. A Orquestra foi fundada por Suassuna junto ao violinista e regente Cussy de Almeida, que a dirigiu. Em texto publicado na contracapa de um dos discos da Orquestra, Suassuna – então diretor do DEC – escreveu que a pretensão dos participantes do Movimento era “realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares de nossa cultura” (1). Justificando a escolha do nome dado ao movimento, explicava que, em primeiro lugar, foi escolhido “porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas” (1). Respondendo aos detratores que julgavam sua postura ultrapassada e elitista, o escritor esclarecia que “(...), sendo ‘Armorial’ o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular – ou ligada ao popular – do que qualquer outra coisa” (1).
Do ponto de vista do conteúdo de sua produção, podemos entender a Arte Armorial como aquela que tem por traço comum o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (ou Literatura de Cordel); a música de viola, rabeca e pífano que acompanha os cantadores, emboladores e repentistas; e a Xilogravura, ou gravação em madeira, freqüentemente utilizada para ilustrar as capas dos folhetos de cordel. Assim, o universo artístico cultural compreendido pelo Movimento abrange a literatura, o cinema e o teatro, através da poesia narrativa dos versos de cordel; as artes plásticas, como a gravura, a pintura, a escultura, a talha, a cerâmica ou a tapeçaria, através da xilogravura; e a música, através do canto e acompanhamento instrumental dos versos e estrofes do mesmo cordel.
Caracterizado pela “primazia da criação sobre a teoria”, como um “Movimento sem manifesto”, o Armorial se proclamou após já se ter definido a sua arte. Isso porque as obras, as criações artísticas e literárias, os encontros e as amizades entre os artistas foram anteriores à sua concepção e organização teórica. Por isso, para nos aproximar mais da sua essência, é necessário fazer um retrocesso no contexto que o lançou.
Para os historiadores, “a evolução do Movimento permite distinguir três fases em sua história” (2): a primeira fase é denominada preparatória e abarca o período de 1946 a 1969; a segunda, chamada fase experimental, vai de 1970 a 1975; e, por fim, a fase “romançal”, a partir de 1976.
A fase “preparatória” iniciou-se em torno do TEP – Teatro do Estudante de Pernambuco; do TPN - Teatro Popular do Nordeste; da SAMR – Sociedade de Arte Moderna do Recife; e do Atelier Coletivo. Destaca-se nesse período – além de Suassuna - a presença do romancista e teatrólogo Hermilo Borba Filho e dos artistas plásticos Abelardo da Hora, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Naquele ano de 1946, Suassuna e Irapuan de Albuquerque organizaram um encontro de cantadores e violeiros no Teatro Santa Isabel, iniciativa de repercussão escandalosa, já que aquele espaço era tido como o templo da cultura de elite do Nordeste. Suassuna publicou, então, um artigo onde aponta a importância do romanceiro e da viola nordestina. Apesar de seu trabalho estar voltado inteiramente para o teatro, algumas características da arte armorial já se manifestaram nesse momento através da aproximação com Samico e Brennand e o interesse pela música popular e seus compositores. Na década de 1950, escreveu um capítulo sobre o maracatu para o livro “É de Tororó, maracatu”, organizado por Hermilo Borba Filho (2). Na década seguinte, já reconhecido nacional e internacionalmente como autor de teatro - principalmente pela tradução e representação de sua obra-prima “O auto da Compadecida” em países como França, Alemanha, Espanha, Polônia e outros - Suassuna “assume aos poucos o papel de mestre e conselheiro de parte da jovem geração” (2), em particular entre seus alunos da disciplina de estética que ministrava na UFPe. Da música, arte que indiscutivelmente evoluiu mais rápido no âmbito do Movimento, estão presentes nessa primeira fase aqueles que seriam os patronos e colaboradores da fase subseqüente: compositores como Jarbas Maciel, Capiba, Cussy de Almeida, Clóvis Pereira e Guerra Peixe.
A fase seguinte, experimental, coincide com a nomeação de Suassuna para a direção do DEC em fins de 1969 e seu desligamento daquele departamento em 1974, quando dá lugar a Marcus Accioly, poeta da Geração de 65 do Recife e que havia se integrado ao Movimento desde 1969 junto à Orquestra Armorial. A criação da arte Armorial dessa fase esteve respaldada teoricamente não por um manifesto, mas por uma série de escritos que permitem definir com clareza a posição do Movimento: O Programa da Exposição de Artes Plásticas, de 1970, supracitada; o “Almanaque Armorial do Nordeste”, coluna semanal do Jornal da Semana, que funcionou como tribuna onde se viu refletido e explicado o desenvolvimento das artes no Movimento; e a brochura intitulada Movimento Armorial, publicada pela UFPe em 1974, e que condensa as discussões realizadas nos espaços anteriores; revelam as referências estéticas e as pretensões artísticas do Armorial. “Ariano Suassuna qualifica seu romance ‘A Pedra do Reino’ como romance Amorial popular brasileiro” (3). Se a música, como foi dito, é a arte que mais evoluiu dentro do Movimento, “é na literatura narrativa, campo privilegiado da criação suassuniana, que a literatura Armorial realiza-se plenamente” (2). E foi justamente a obra “O Romance da Pedra do Reino”, lançada em 1971 por Suassuna, que se tornou porta-bandeira, o modelo literário e cultural para o movimento por ele liderado: “(inspirou) composições musicais, poemas e quadros (...). As gravuras de Suassuna que integram o livro (foram) reproduzidas pela tapeçaria armorial...” (2).
A consolidação do Movimento veio nessa fase experimental, com a segunda edição da exposição de arte Armorial ocorrida na Igreja do Rosário dos Pretos de Recife, em 26 de novembro de 1971. A música do Movimento esteve representada pelo Quinteto Armorial, grupo fundado naquele ano e que contava em sua formação com os músicos Antônio José Madureira (viola nordestina, tambor e zabumba), Edílson Eulálio Cabral (violão, ganzá e matraca), Fernando Torres Barbosa (marimbau, flauta e tambor), Egildo Vieira do Nascimento (posteriormente substituído por Antônio Fernandes de Faria) (flauta) e Antônio Carlos Nóbrega de Almeida (violino, rabeca e caixa). Instrumentos como o marimbau - de som áspero e monocórdio – e a rabeca – instrumento popular antecessor do violino -, utilizados pelo Quinteto, foram fabricados e restaurados pelo artesão popular nordestino João Batista de Lima. Dentro da perspectiva musical do Movimento, a música executada pelo Quinteto foi a que mais se aproximou dos anseios de Suassuna. Sua amizade e proximidade com os componentes do grupo encontraram no talento de Antônio José Madureira, jovem compositor e músico, o ponto de partida para aquilo que desejava: um grupo com instrumentos musicais populares. Dois famosos violeiros, Lourival Batista e Diniz Vitorino Ferreira, dirigiram a iniciação de Madureira na viola nordestina. No concerto inaugural do Quinteto, a orientação musical apresentada deixou claros os rumos da música Armorial: a primeira parte é dedicada à música barroca européia (Scarlatti, Fernando Ferandière, Vivaldi e Haendel); a segunda parte apresentou peças do barroco brasileiro descobertas e restauradas pelo padre Jaime Diniz (uma de Luís Álvares Pinto e outra de José de Lima); a terceira parte, Armorial, mostrou o “Improviso”, a “Chamada” e o “Repente Armorial”, de Antônio Madureira; e duas peças de um colaborador dos músicos armoriais: José Generino de Luna. Nas gravações do seu primeiro disco intitulado “Do Romance ao Galope Nordestino” (que apresenta na capa a gravura “Alexandrino e o pássaro de fogo”, de Gilvan Samico) (4), o repertório escolhido pelo Quinteto retomou algumas peças de compositores da fase preparatória como o “Mourão”, de Guerra Peixe e “Toada e desafio”, de Capiba; além de criações do próprio grupo. No segundo álbum, “Aralume” (capa com a gravura “O triunfo da virtude sobre o demônio”, de Samico) (5), Madureira compôs uma suíte em quatro movimentos inspirada em “O homem da vaca e o poder da fortuna”, teatro de Suassuna lançado em 1958. Nos dez anos de existência, o Quinteto Armorial foi aclamado pela crítica especializada, recebendo prêmios de melhor disco do ano (Revista Veja e Jornal do Brasil, em 1974; e JB, em 1976) e melhor conjunto instrumental de 1974 pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Excursionou pelo país e pelo exterior, chegando a se fixar em Campina Grande, na Paraíba, quando passou a trabalhar no âmbito da Universidade Federal daquele estado.
Capa do disco intitulado Sete Flechas, último trabalho do Quinteto Armorial, lançado em 1980 pela gravadora Discos Marcus Pereira. Pode-se dizer, segundo critérios de fontes aqui consultadas, que este disco pertence à fase Romançal.


A fase experimental chegou ao fim em um momento de divergências exacerbadas entre o Quinteto e a Orquestra Armorial. Suassuna e Madureira se unem e criam uma nova Orquestra – mantendo a “espinha dorsal” do Quinteto -, o que oficializa o rompimento de Cussy de Almeida com o Movimento e o início de uma nova fase: a Romançal. Ocupando o cargo de Secretário de Cultura de Recife, Suassuna procura desenvolver uma política de pesquisa e criação artística voltada para as estruturas culturais existentes no município: Orquestra Sinfônica do Recife, Coral Guararapes, Orquestra Popular, Balé Popular do Recife e Orquestra Municipal. Romançal, nome da nova fase e nova orquestra é outro neologismo, alusão que serve “para exaltar o romance, definido como ‘composição polifônica” e a uma “reminiscência do termo romani, designando a língua falada pelos ciganos da Europa Ocidental...” (2). Nesse ponto, o Movimento perde adesões e redefine sua área de atuação, que se vê reduzida: a fase romançal, iniciada em 18 de dezembro de 1975 com um concerto da Orquestra homônima no Teatro Santa Isabel, é avaliada como aquela que “reafirma a ligação privilegiada com a cultura popular” (2) ao mesmo tempo que elimina a maioria das controvérsias e confusões criadas e mantidas em torno da palavra que foi modelo da criação dessa mesma cultura: Armorial. Em 1981, Suassuna declara abandonar a literatura, mantendo apenas sua atividade docente durante os dez anos em que esteve desligado do mercado literário.
No disco “Sete Flechas” (capa com layout de Aníbal Monteiro sobre quadro de Fernando Torres) (7) - último da carreira do Quinteto Armorial -, tem-se um exemplo de criação musical que ilustra o caráter essencialmente oral da improvisação, da riqueza do canto e da música das palavras que somente o teatro – arte que mais se aproxima da “armoralidade” – consegue reencontrar. Tocado e cantado por Antônio Carlos Nóbrega, o “Martelo Agalopado”, escrito por Suassuna em 1961, é o primeiro registro de canto na música do Quinteto Armorial e “segundo sua classificação do Romanceiro Popular Nordestino, faz parte da poesia Improvisada, pertencendo à família das Décimas, no caso o Martelo” (6).


Martelo Agalopado

Ariano Suassuna

O galope sem freio dos cavalos,
os punhais reluzentes do cangaço,
a prata dos Bordões, no seu traspasso,
o pipocar dos rifles e seus estralos.
O sino, com seus toques de badalo,
as onças com seus olhos amarelos,
o lajedo que é trono e que é castelo,
o ressonar do Mundo – esta Onça parda,
o vento, o sangue, o sol, a madrugada,
e eu tinindo o galope do martelo.

Na prisão destas pedras fui atado,
aos olhos garça duma Cega fera.
O sangue da pobreza é uma Pantera
que estraçalha meu povo injustiçado.
Onde reina a justiça do sonhado,
senhores do baraço e do cutelo?
Ela vem! E eu, ao fogo do flagelo,
mesmo em dura prisão assim metido,
na cadeia dos anos vou, detido,
retinindo o galope do martelo.

E as abelhas, o mel acre e dourado,
e o angico, e o tambor, e a baraúna.
O concriz auri-rubro, a caraúna,
os cardeiros de frutos estrelados.
Chora a Vida: - “Ai meu sangue assassinado!”
Grita o Mundo: - “Na pedra eu me cinzelo!”
E o Tempo: - “Tudo eu queimo e esfarelo!”
Quanto a mim, aos açoites da virola,
vou, nas cordas de prata da viola,
retinindo o galope do martelo.


Sendo um processo especial de cantar, usado pelos cantadores nordestinos, o martelo acima ilustra como a relação com o folheto de cordel e a cantoria dos repentistas e cantadores está no alicerce da criação armorial, usados como modelo por todos os poetas do Movimento. Associadas a essa “poética da voz”, as gravuras e imagens que ilustram tanto os folhetos como as capas e encartes dos discos desempenham um importante papel na transmissão oral desse universo Armorial popular brasileiro.

Referências Bibliográficas e Discográficas:

(1) – A Música e o Movimento Armorial. Ariano Suassuna. Contracapa do LP Orquestra Armorial. São Paulo: Continental, 1974.
(2) - Em Demanda da Poética Popular – Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.
(3) – Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
(4) – Do Romance ao Galope Nordestino. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1974.
(5) – Aralume. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1976.
(6) - Sete Flechas. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1980.