por Magno Córdova.
Há uma rede em primeiro plano na imagem de capa do disco Refazenda, de Gilberto Gil. Quase imperceptível ao primeiro olhar, ela é imediatamente evidenciada na apreciação da contracapa do LP. O disco é de 75 e é uma pérola, em conformidade com o que a imagem daquele objeto marítimo/pesqueiro que o envolve sugere. É dessa capa que guardo a memória mais remota das feições de Dominguinhos.
(Capa e Contracapa do LP Refazenda, de Gilberto Gil)
Até ali, seu nome, ainda sem
rosto pra mim, povoava um espectro imaginário - pueril e fértil na cabeça de um
menino - alimentado por audição intuitivamente atenta de repertório musical
diverso. Como creio que ocorre em todo ouvinte minimamente atento, configuraram-se
durante minha infância escolhas a partir de critérios subjetivos, basicamente emotivos,
organizando em destaque aquele repertório que mais me aprazia.
Antes de 1975, quando conheci o
Refazenda, eu já havia me impressionado e incluído, naquela referida trilha
sonoro-musical pessoal, uma musica assinada por Dominguinhos. Presente no disco
Berra Boi, lançado em 1973 pelo grupo pernambucano Quinteto Violado, não me
cansava de ouvir, isoladamente ou em família, o “Forró do Dominguinhos” e todo
aquele LP. O Berra Boi foi um disco imprescindível em minha formação de
ouvinte, no que essa palavra pode significar em todo seu alcance. Assim, após
tomar conhecimento daquela faixa instrumental (não havia letra na interpretação
do grupo pernambucano), a simples audição ou visão do vocábulo Dominguinhos
imediatamente acionava em minha memória a leitura dada pelo Quinteto Violado à
música.
("Forró do Dominguinhos", com o Quinteto Violado, do disco Berra Boi. Fonte: Youtube)
(Capa do disco Berra Boi, do Quinteto Violado)
Pois, o Refazenda veio fazer coro
ao que a mim o Berra Boi representou e representa em termos de audição musical
e do mundo. Para além da sedimentação que representou o vínculo da palavra-nome
Dominguinhos com o seu referente físico, sua dimensão corpórea de semblante
sereno e sorriso perene que a fotografia me informava, foi precisamente o campo
sonoro de seu trabalho que em mim se consolidou ali no disco de Gil. O “Forró
de Dominguinhos” ganhou, com o texto brilhante de Gilberto Gil, a palavra em
sua medida plena, tornando-se lamento. Um lamento sertanejo.
("Lamento Sertanejo", de Dominguinhos e Gil, gravação do disco Refazenda. Fonte: Youtube)
Lamento sertanejo
(Dominguinhos e Gilberto Gil)
Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo
Lamento sertanejo
(Dominguinhos e Gilberto Gil)
Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo
Por isso atribuo a Dominguinhos a
consumação da presença clara de Gonzaga no contexto de uma musicalidade de
herança tropicalista - de germe tropicalista, reafirmada no período pós-exílio - da obra de
Gilberto Gil. A partir do momento em que veio a público pelas mãos de Gonzaga, Dominguinhos honrou seu "apadrinhamento" cumprindo a efetiva atualização criativa dos
elementos musicais fixados pelo mestre de Exu na obra de gente feito Gil e Gal - e outros fora e dentro daquele contexto.
Não me furto a levar adiante a interpretação desse arcabouço que envolve e é protagonizado por Dominguinhos vislumbrando - também aqui - o confronto historicamente situado na relação entre sertão (do lamento) e mar (da rede). Tão caro aos povos dos estados nordestinos de onde vieram Gil e Dominguinhos, ecoa o Conselheiro: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”.
PS: Em minha dissertação de
mestrado fiz rápida apreciação sobre o cenário que envolve o retorno de Gonzaga
aos palcos e ao gosto da juventude (espetáculo “Volta pra curtir”*) e o retorno
dos tropicalistas do exílio. Não há, naquele meu texto, referência a
Dominguinhos, tratado nos termos que aqui o faço, mas creio ser um
desdobramento plausível.
*Aqui no Rabiscos de Ouvido há um versão levemente alterada dessa apreciação. O título do texto aqui é "Luiz Gonzaga volta pra curtir" (cf. http://rabiscosdeouvido.blogspot.com.br/2015/11/luiz-gonzaga-volta-pra-curtir.html)
*Aqui no Rabiscos de Ouvido há um versão levemente alterada dessa apreciação. O título do texto aqui é "Luiz Gonzaga volta pra curtir" (cf. http://rabiscosdeouvido.blogspot.com.br/2015/11/luiz-gonzaga-volta-pra-curtir.html)