sexta-feira, 4 de agosto de 2017

VIVA LUIZ MELODIA!

(por Magno Córdova)


O Programa Aldeia Do MUNDO, transmitido pela Rádio Inconfidência FM de Belo Horizonte, presta sua homenagem ao compositor Luiz Melodia com a reprodução de um trecho de minha dissertação de mestrado, defendida em 2006 na UnB.
Foram mantidas as normas da ABNT, conforme texto original, com as notas indicadas ao final do fragmento do texto da canção em foco. Canção apresentada em vídeo anexo.
"O festival Abertura ocorreu nos dois primeiros meses de 1975, no Teatro Municipal de São Paulo, realizado pela Rede Globo de Televisão. Esse concurso pode ser considerado o primeiro acontecimento musical, posterior à fase áurea desses eventos, que mobilizou nacionalmente platéias de telespectadores em torno de um encontro dessa natureza. Do ponto de vista da crítica, de parte do público e de alguns artistas – principalmente aqueles vindos da época de ouro dos festivais -, este teve uma importância menor para a história da música popular brasileira(1). Entretanto, o que nos interessa é justamente tentar rever, pela apreciação de alguns episódios ocorridos naquele festival, sentidos possíveis que ultrapassam essa compreensão e esse seu significado comum. Chamando atenção, é claro, para o fato de que a almejada plausibilidade da avaliação que se segue talvez tenha se descortinado pelo distanciamento temporal do olhar relativamente ao acontecido, o que não a legitima como mais nem menos verdadeira.
Chama atenção naquele concurso justamente o que ele representou de re-configuração de códigos ligados à formação imaginária de alguns espaços consolidados do território nacional a partir do cancioneiro popular, em sua visibilidade e dizibilidade. Por mais que alguns processos musicais populares de alteração no imaginário coletivo aqui apontadas já viessem se esboçando desde princípios da década, através, inclusive, do surgimento de alguns desses artistas mencionados, é possível que tenha sido a partir desse festival que seu alcance foi dimensionado em escala de maior abrangência. E não há dúvida que isso se deveu, em grande parte, pela mediação televisiva. Tomemos como exemplo um referente externo ao eixo central deste trabalho – que, no entanto, é essencial para a compreensão de sentidos presentes nas representações hegemônicas de um topo significativo da nação, a partir da música popular – para que se vislumbre a dimensão do que está sendo dito.
Quando o compositor Luiz Melodia subiu ao palco do Abertura para cantar “Ébano”, uma das questões postas pela sua presença foi a da pertinência dos códigos que associavam tradicionalmente a favela ao samba. Melodia nasceu e foi criado no Morro de São Carlos, no Bairro de Estácio de Sá, do Rio de Janeiro. Como se sabe, foi no Estácio que surgiu a primeira Escola de Samba com essa designação, em fins da década de 1920: a “Deixa falar”. Um dos seus criadores foi o compositor Ismael Silva que, junto com Nilton Bastos, Heitor dos Prazeres, Bide e Armando Marçal, era componente do que ficou conhecido como “Os Bambas do Estácio”. A expressão “Bambambã”(2), para designar o sujeito influente, valente e de muita habilidade pra compor sambas, surge desse contexto. Além do mais, os sambas do Estácio, para alguns analistas(3), inauguram uma fase “moderna” do gênero, em contraposição ao samba amaxixado(4), até então em voga, representado por músicos e compositores como Donga, Pixinguinha, Sinhô, Caninha(5) e outros.
A canção “Ébano” trouxe elementos claramente herdados do Jazz para o palco do Municipal de São Paulo, em 1975. A recorrência de elementos musicais “exógenos” (jazz, reggae, salsa, blues) na trajetória artística de Luiz Melodia, convivendo simultaneamente com um repertório de choros e sambas-canções, o tornou alvo de críticas por parte de uma vertente guardiã das tradições do samba e do morro. A persistência da crítica motivou uma resposta musical irônica da parte do artista algum tempo depois: Melodia juntou-se ao parceiro Ricardo Augusto e, no início da década seguinte, gravou um samba marcado por uma rítmica funk e uma instrumentação jazzística onde se defendia das denúncias de estrangeirismo:
Disseram no jornal televisão/ Que eu não gosto mais de samba/ samba/ Jornal televisão está no ar/ Mas eu sou bamba/ bamba/ A lógica se mostra, deixa estar/ A luz do sol, a cor do mar não se fabrica/ Em minhas veias corre sangue a batucar..."(6)
(1) Escrevendo sobre Luiz Melodia, em 1976, o jornalista Tárik de Souza assim qualificou o festival: “No aguado festival ABERTURA, dois anos atrás (sic), Melodia que ficara restrito a algumas situações isoladas, apesar do sucesso inicial, reaparecia” (grifo meu). Cf. “Luiz Melodia”, in SOUZA, Tárik e ANDREATO, Elifas. Rostos e gostos da música popular brasileira. Porto Alegre: L & PM Editores Ltda., 1979. O texto sobre Melodia assinado por Tárik de Souza foi originalmente publicado no Jornal do Brasil do dia 18 de abril de 1976
(2) A verificação etimológica desses termos aponta para os primórdios das discussões acerca da noção de malandragem na história da música popular brasileira. Confira História do Samba, São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Globo, 1997. Fascículo 4.
(3) Como, por exemplo, Sérgio Cabral e José Ramos Tinhorão. Cf. PEREIRA, Arley. “No Estácio, da Deixa Falar, o samba aprendeu a sambar”. In: História do Samba. Id., pp.70/4.
(4) O samba amaxixado, como o próprio adjetivo indica, é aquele ainda marcado pela predominância de elementos constitutivos do maxixe, em especial os relativos às células rítmicas e melódicas. José Ramos Tinhorão nos informa que o maxixe apareceu no Brasil por volta de 1870, como dança. Segundo ele, “foi a primeira grande contribuição das camadas populares do Rio de Janeiro à música do Brasil. Nascido da maneira livre de dançar os gêneros de música em voga na época – principalmente a polca, a schottisch e a mazurca –, o maxixe resultou do esforço dos músicos de choro em adaptar os ritmos das músicas à tendência aos volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos das danças de salão”. Esta longa citação em nota apenas se justifica na medida em que confronta, ao contexto dos anos de 1970, uma evidência acerca da presença estrangeira na formação de um gênero coreográfico e musical brasileiro, cem anos antes dos episódios aqui investigados. Cf. TINHORÃO, José R. Pequena história da música popular. São Paulo:Círculo do Livro, s/d. Pp.59.
(5) Este não pode ser, no entanto, considerado um grupo homogêneo em suas feituras musicais. Ao contrário, discutia-se o confronto entre um samba de terreiro, ou de Partido Alto, de Pixinguinha e seus companheiros, em oposição ao samba urbano de Sinhô. Para as diferenças entre Sinhô e Pixinguinha, por exemplo, confira ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1981.
(6) “O sangue não nega”, de Luiz Melodia e Ricardo Augusto, foi lançada no LP Felino, de Luiz Melodia, em 1982.