(por Magno Córdova)
Nada li antecipadamente sobre seu
trabalho, por decisão. Apenas soube que havia. E que era bom.
A primeira coisa ocorrida com a
escuta de Alberto Salgado foi a sensação de pé fincado no chão. A segunda foi
voo.
O chão, às vezes seco. Água do
mar, água Doce, seja como metáfora ameaçadora, seja como escassa, em ameaça
real. E gente ao redor, na beira, na jangada, que ainda assim se permite pescar
sonhos. Sonhos de pescar e alçar voos, apesar de gaiolas, em ventos de
anunciação, transmissores de amores e outras dores.
Foi “Marinheiro”, do disco Além
do quintal, a primeira de sua autoria que ouvi cantada por ele. Ali, minha
atenção já foi chamada pelo equilíbrio geral do corpo da canção, desde a
entrada do baixo na abertura até a emissão da voz isolada ou sobreposta em duo de
Alberto, cujo timbre me pareceu ter nascido praquele arranjo, praquela estrutura
sonora, praquela música. Tudo absolutamente inteiro, pleno, em seu lugar. E, ao
mesmo tempo, surpreendentemente avassalador na força comunicativa, no impulso projetado,
na perspectiva em movimento abarcada.
As sensações iniciais apontadas não se deram em sobreposição uma à outra, não foram etapas em processo
ou por substituição: conjugaram-se sem conflito, complementares. A síntese foi
o tipo de observação a mais abrangente de paisagem encontrada que consigo
realizar: o olhouvido conduzido à distância vista do alto e percorrendo orientado
pelo experimento do solo pisado, roçado, caminhado, descalço.
Me vi ali diante de idioma
musical que me punha nesse duplo e simultâneo exercício: de ouvinte passivo em
processo de conhecimento e de agente identificador de sentidos havidos,
referenciais empíricos e emocionais da experiência de audição tida.
O que em seu trabalho ativou e
tem ativado em mim, no entanto, ultrapassa questões de ordem emocional muito claras e bem
elaboradas, justificadas em territórios perenes de qualquer alçada. O leito
desse rio, diferentemente do que fizemos com o nosso Doce, é caudaloso e
cristalino. Por isso, múltiplo. Também nele não se pode dizer que seja algo atrelado a argumentos exclusivamente acionados por essa instância maior que é a memória, ao menos em seu sentido
mais imediato de conexão com vivências palpáveis comprovadas e inequívocas. Sua estrutura a mim me chegou há pouco, encontrando-se aberta tanto à criação quanto ao reconhecimento recíproco.
O encaminhamento involuntário de
apreensão daquela primeira escuta, do tipo que não permite dispersar-se em uma
nota ou um segundo sequer logo no contato inaugural com a obra musical, costuma
criar uma expectativa - fundada nas hipóteses e conexões aqui descritas - de encontrar-se
diante de trabalho matricial.
A par do novo regime de escuta
instaurado, fragmentado, predominantemente solitário em fones de ouvido,
dissociado de conexões imediatas do real ao redor do ouvinte; ou, antes,
atrelado quase sempre a um roteiro visual/virtual imposto por videoclipes e
mesmo por apresentações do artista em palco, ter em mãos o Cabaça d’água
recuperou o lugar que historicamente me pôs como ouvinte até onde me encontro,
pilar de minha formação como plateia não passiva. Ao menos com estímulo e liberdade
pra pensar criativamente diante da obra que me chega aos ouvidos, diante do
conhecimento.
Nesse sentido, consideradas as novas apropriações
e contornos do ritual que envolve a experiência formativa de ouvinte, tendentes
a levar tudo a se transformar em musak, o contato com o disco físico de
Alberto, aquele que foi premiado numa categoria regional a meu ver
inexplicável, me expôs um quadro amplo de país. Recife, Catolé, Angical,
Copacabana, Mariana estão ali. Ali nos limites desse distrito literalmente federal
em cuja capital há sobradinhos bem armados atravessados por leitos melódicos admiravelmente
versáteis construídos sob "o arame, o chocalho o vintém e o pedaço de pau", de Pastinha,
de Besouro, de Naná.
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