quinta-feira, 29 de março de 2018

Uma onda

(por Magno Córdova)



Fala visceral, palavra, é da beira o batismo da esfera que tudo aqui abarca.

“Vamos dar volta por cima
Volta e meia vamos dar”

Coco De Roda (Foto: Acervo História de Alagoas)

Distante, mas a caminho do mar, a perspectiva é ribeirinha, da beirada de um que nele deságua.

“Agora eu vou mudar a rima vou diluir meu verso”

De mamona, de piaba, do ingá e do umbu, traz cheiro de terra da ladeira que sobe pra praça, do pé que marca no chão, que vai pra rua do mercado. Prenúncio que dá no pau e no couro do tempo.

“Pra segurar o tombo nego tem que ser ligeiro”

Junção diversa sem que os amparos evocados sejam correlatos. Surgem sem cronicidade ou ordem de aparição, sem prioridade uns sobre os outros.

“O mar não tá pra peixe puxa a loa eu te peço”

Coerência incomum o que a costura neles inscrita projeta de sentido vívido ao alcance do presente.

“A dança do dia a dia é osso duro, meu irmão”

A força do elemento evocado por si só alcança uma personalidade combativa que antes não possuía, adotando pra si um sentido coletivo que impregna o caráter lúdico espontâneo de sua origem.

“Dança, dança cirandeira pra canoa não virar”

O timbre, a pele preta, o requebro e o gingado, o compasso, a força descomunal parida da suposta fragilidade de brincadeira de roda pelas ruas da cidade que ficou pra trás... A semente do chocalho, o apito, a bola e o sopro no bucal... tudo. Até a rodagem.

“Não temer o tempo ruim, ter alma de guerreiro”

Como se o elétrico da roupa sonora apenas ecoasse por aquisição o tambor do universo de seres similares que na memória do corpo - e da própria canção – habitam, aquáticos.

“Se quiser cantar comigo fique atento fique esperto pro refrão”

Faz crer-se apagar tudo aquilo que não presta, cantada em coro por aqueles que assim a vislumbram.



Lá vem a onda
(Escurinho e Alex Madureira)


A onda quebra lá em Paraíba
Dança ciranda na beira do mar
O vento sopra os cabelos da morena
Brilhando na luz do luar
Estrela do mar vem mais eu
Vamos dançar cirandá
Brincar ao redor da fogueira 
Se embalando pra lá e pra cá.

Ô, ô, ô, ô.
Ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô 

Agora eu vou mudar a rima vou diluir meu verso
Se quiser cantar comigo fique atento fique esperto pro refrão
A dança do dia a dia é osso duro meu irmão
No balanço dessa onda nessa praia eu te confesso
O mar não tá pra peixe puxa a loa que eu te peço
Dança, dança cirandeira pra canoa não virar

Lá vem a onda quebrando na batida do ganzá
Pra segurar o tombo nego tem que ser ligeiro
Não temer o tempo ruim, ter alma de guerreiro
Brincar no nevoeiro até o dia clarear
Ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar volta por cima
Volta e meia vamos dar 

Ô, ô, ô, ô.
Ô, ô, ô, 
Ô, ô, ô, ô


  


domingo, 11 de março de 2018

Saúde pública no Brasil: tá certo, Doutor!

(por Magno Córdova)

Texto produzido e apresentado por mim no Programa Outros 500, levado ao ar pela Rádio Inconfidência FM de Belo Horizonte nos anos 2001/2001.

O Rio de Janeiro deveria deixar de ser o território da barbárie e da escravidão, ao se tornar sede provisória do império lusitano. A imagem que os europeus tinham do principal porto do país deveria se transformar com a chegada de dom João VI. Foram determinadas mudanças na administração pública colonial e a capital se tornou o centro das ações sanitárias. Por ordem da corte foram fundadas as duas primeiras escolas de medicina do país: Rio de Janeiro em 1813 e Bahia em 1815. Após a independência, D. Pedro I ordenou a criação da Imperial Academia de Medicina, órgão consultivo do Imperador em questões ligadas à saúde pública nacional e que reunia os principais clínicos da cidade. O grande desafio enfrentado pelos médicos do império era evitar as doenças infecciosas que atingiam a população do Rio e se espalhavam por todo o país através dos viajantes. As maiores epidemias cariocas do período foram de varíola, febre amarela e cólera. Levantaram a hipótese de que essas epidemias seriam causadas por navios vindos do estrangeiro. As embarcações suspeitas de transportarem passageiros adoecidos eram submetidas à quarentena, em ilha próxima à baía de Guanabara. A prática do uso da vacina contra a varíola – criada na Inglaterra em 1796 a partir do pus retirado de bois infectados – foi uma exigência que teve rápida aceitação. Uma outra estratégia era convencer a população a se refugiar nas regiões serranas em períodos de crise. A quem não podia sair da cidade, era recomendado evitar o consumo de bebidas e frutas geladas que, segundo diziam, facilitavam as infecções. De tempos em tempos, os agentes de saúde convocavam a milícia a disparar tiros de canhão para movimentar o ar e afastar o perigo dos “miasmas” espalhados pelo céu da cidade. Por “miasmas” entendiam ser o ar corrompido que, vindo do mar, pairava sobre a capital.

Uma indicação para leitura é o livro “História da saúde pública no Brasil”, de Cláudio Bertolli Filho. Deixo aqui uma canção que, distanciada no tempo da abordagem acima - lançada na década de 1970 - trata, no entanto, de questões que dialogam com ele.

Tá certo, doutor (Gonzaguinha)

É um atentado à moral e aos bons costumes vigentes, por certo inconveniente
Deixar este homem doente perambular pelas ruas a cometer tais falcatruas
Incompatível com os estatutos dessa gafieira,
Dançar dessa maneira, desrespeitando o salão, desfigurando o padrão
Fere as normas do edital de formação da nossa firma atual

Esse homem está enfermo, nem precisa exame sério, seu mal está constatado
Depressa, põe no hospital!

Deve ficar bem isolado, em quarto bem fechado
Sem portas ou janelas, pois pode ser contagiante
Dieta mais que rigorosa, medicação bem adequada e muita observação
Pra que não haja agravantes
Em tempo hábil deve ir até o centro de controle para testar sua boa condição,
Se está fechada a ferida

Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção
Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção

Pois traz perigo à nossa vida
Não dou amparo, nem guarida
Dou guaraná, com pesticida
Pra acalmar minha dormida
Não tô afim de pôr em risco a minha condição


domingo, 4 de março de 2018

São João Del Rey - Pilar, Mercês e Liberdade

(por Magno Córdova)

Foi a escuta da canção "Liberdade", da parceira João Bosco e Cacaso - lançada no álbum Na onda que balança (1994) -, que motivou a publicação desse texto aqui. 

"Liberdade" é dessas canções que promovem o caminhar por ruas de cidades mineiras - paisagens mineiras que se conhece ou mesmo onde nunca se esteve - fora da lógica pragmática de percursos andarilhos dos grandes centros, quando neles se habita: prática que tem se tornado quase que exclusiva nos espaços urbanos das grandes cidades. Sua sonoridade evoca o ritmo do passo que o batimento cardíaco supõe ideal pra essa experiência de conhecimento, pelo seu compasso; e os instrumentos, incluída a voz de João, informam a aparição e o desenho, sob o olhar, de cada elemento que compõe a paisagem. Mais do que a cidade real, diante dos olhos, a música aqui desenha a cidade imaginada, conjugada (ou não) com a cidade lembrada, a dos fragmentos de memória. Dessa forma, impõe-se serena a resistência do olhar atento, contido e perspicaz do observador.

Daí, as palavras "pilar" - como estrutura, como coluna - e "mercês" - como graça, como proteção -, impregnadas de certa religiosidade no contexto aqui tomado, surgirem como nomes que conduzem esse duplo, de transeunte ao mesmo tempo que sedentário, capacitado à apreensão da horizontalidade que a cidade oferece, dela fazendo parte. Liberdade, nesse caso, mais do que palavra de insígnia de bandeira, é a fusão do corpo da cidade com o corpo de quem a pratica, esse lugar de "gente a passar, muitas cabeças".

Percorrer a cidade pela música - seja pela lembrança, seja pela imaginação - é um rico exercício.

Para quem chegou até aqui, deixo "Liberdade", de João e Cacaso. Em seguida, apresento o referido texto. 

Liberdade
(João Bosco e Cacaso)

Em todo sonho
É sempre um céu azul
Em todo sonho
É sempre um mar sem fim
Só mesmo um louco
Pra sonhar assim
Sonha viver
Em liberdade

Meu canto é livre
E a paixão sem fim
O meu lugar
É não mudar daqui
Sei que meu sonho
Vai viver por mim
Mesmo que tarde
A liberdade

Luz da Matriz
Sino a tocar
Luz das Mercês
Luz do Pilar
Gente a passar
Muitas cabeças
Gente a passar
Muitas cabeças


(vídeo extraído do Youtube. Trata-se do único registro contendo a versão de "Liberdade" mencionada, a que está presente no repertório do disco Na onda que balança, de João)

Assim como outro material publicado aqui no Rabiscos de Ouvido, as informações contidas no texto representam parte do conteúdo de uma ficha por mim organizada, na condição de consultor em projeto intitulado Promoção da diversidade e do diálogo intercultural entre o Brasil e o exterior por meio do turismo cultural, realizado em 2010, para o Ministério do Turismo, através da Embratur.

Portanto, devem ser consideradas no contexto do ano em que o projeto foi realizado e, também, tendo em vista o público prioritário a que foi destinada.

SÃO JOÃO DEL REY - Minas Gerais


O povoamento da região onde hoje é São João Del Rei começou no final do século 17 com o bandeirante Tomé Portes Del Rei. Com ele, teve início a atividade de travessia do Rio das Mortes, que tem esse nome por ser muito difícil de ser atravessado. O local ficou conhecido com o nome de Porto Real da Passagem. Em 1702, descobriu-se ouro no local, que deixou de ser apenas um ponto de apoio para ser um importante centro de mineração. Com a corrida do ouro, deflagrou-se o conflito conhecido como “Capão da Traição”, dentro da Guerra dos Emboabas, no ano de 1709. Nessa época, o lugar era conhecido como Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes. Em 1713, o governador Dom Brás Baltazar da Silveira elevou o arraial à categoria de Vila com o nome de São João Del Rei, em homenagem a Dom João V, rei de Portugal, e a Tomé Portes Del Rei.  

Por estar localizada na fértil região do Campo das Vertentes e após a decadência da exploração aurífera, a cidade teve sua economia refeita com a atividade agrícola. No ano de 1838, foi elevada à categoria de cidade. Ainda durante o século 19, o município participou dos movimentos Sedição Militar de Ouro Preto e Revolução Liberal de 1842. Em 1881, a cidade recebeu a visita de Dom Pedro II para a inauguração da estação da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Em suas ruas estão alguns dos exemplares mais expressivos da arquitetura colonial mineira. Há as velhas pontes de pedra em cantaria da Cadeia e do Rosário, e o chafariz da Legalidade, popularmente conhecido como Chafariz dos Arcos. Construído em 1834,  o chafariz comemora o fim do motim ocorrido em 1833, quando a capital “legal” de Minas foi transferida para São João Del Rei. A cidade também é famosa por suas ricas igrejas, como a Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, com seus altares bordados a ouro, e a de São Francisco de Assis, localizada no meio de uma praça com palmeiras imperiais centenárias. Há, ainda, as Igrejas de Nossa Senhora do Carmo, de Nossa Senhora das Mercês e de Nossa Senhora do Rosário. Possui diversos exemplares da arquitetura eclética e de outros estilos dos séculos 19 e 20.

É possível realizar um passeio de maria-fumaça pela Serra de São José até Tiradentes. Há boas compras de artesanato nos municípios vizinhos de Prados, Coronel Xavier Chaves e Resende Costa.

Na culinária, o feijão tropeiro, o frango ao molho pardo, o tutu de feijão, a galinha caipira, o angu e o torresmo são algumas das iguarias encontradas na região. A cidade é ainda mais conhecida pelos queijos, pelo pão de queijo e bolinho de feijão ou pela combinação de ambos, conhecido como tejucano. As sobremesas são as amêndoas e os confeitos de açúcar com amendoim ou coco, distribuídos às crianças quando participam das procissões vestidas de anjos, uma tradição local.

Em 2007, recebeu o título de Cidade Brasileira da Cultura, um projeto instituído pela ONG Capital Brasileira da Cultura, a partir do modelo do projeto Capital Europeia da Cultura, que nasceu na Grécia em 1985. Dentre os principais aspectos destacados que justificaram o prêmio, estão:

  • a importância de seu patrimônio histórico, em que se destacam inúmeras igrejas de estilo barroco e neoclássico, com altares grandiosos e requintados em detalhes arquitetônicos e ornamentais;
  • os marcos da arquitetura colonial mineira como o prédio sede da prefeitura, a casa do barão de Itambé, os solares do barão de São João del-Rey, da baronesa de Itaverava, dos Lustosa, dos Neves, o casario da rua Santo Antônio, dentre outros;
  • a efervescência cultural da cidade, com destaque para as duas orquestras bicentenárias, a Lira Sanjoanense e a Ribeiro Bastos que com suas músicas sacras barrocas alimentam a tradição religiosa local;
  • a semana-santa em que são revividos todos os rituais centenários, como celebrações em latim, procissões e ofício de trevas;
  • as festas populares como o carnaval, a folia de reis e os grupos de congados que também têm destaque na rotina cultural local;
  • o sistema de comunicação único de toque de sinos;

A cidade dos sinos, como é conhecida, também foi escolhida por ser referência no turismo de estudos e intercâmbio. A Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) foi considerada uma forte aliada, pela tradição em apoiar essa prática.

São João Del Rei integra o roteiro do circuito “Estrada Real Cultural”, juntamente com Belo Horizonte e Tiradentes (em Minas Gerais), Parati (no Rio de Janeiro), São Luís do Paraitinga e Cunha (em São Paulo).

Principais festas e eventos

Serenata Natalina: Anualmente, em dezembro. Durante dois dias, um grupo toca em diversos pontos da cidade. Em diversos pontos da cidade.

Carnaval: Anualmente, em fevereiro ou março. Festa popular. No centro da cidade.

Festa do Divino: Anualmente, em junho. Encontro de congadeiros de Minas Gerais. Na Matriz do Senhor Bom Jesus de Matozinhos.

Procissão de Nossa Senhora do Carmo e Novena: Anualmente. Festa popular. Na Igreja Nossa Senhora do Carmo.

Festa de Nossa Senhora da Boa Morte: Anualmente. Festa popular. Na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar.

Festa de Nossa Senhora das Mercês: Anualmente. Festa popular e religiosa. Na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar.


(Festa em homenagem à santa atrai milhares de devotos todos os anos – Foto Gazetaextraída de http://www.gazetadesaojoaodelrei.com.br/site/2014/09/n-senhora-das-merces-e-celebrada-por-fieis/)

Festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Maria Santíssima: Anualmente. Festa religiosa. Na Igreja de São Francisco de Assis.

Comemorações do Aniversário da Cidade: anualmente, em 8 de dezembro, comemora-se a fundação da cidade em diversos pontos da cidade.

Festa de Nossa Senhora do Rosário e Natal: Anualmente, em dezembro. Festa religiosa. Na Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Anuário Musical São João Del Rei: Anualmente, em julho e agosto. Evento musical. Nas ruas e Igrejas da cidade.

Semana Santa: Anualmente, em março ou abril. Evento religioso. Diversos pontos da cidade.

Inverno Cultural da UFSJ - São João Del Rei: Anualmente, em julho. Evento cultural.

A cidade é famosa pelo artesanato em estanho. Há também esculturas de madeira, peças em tear como colchas, mantas para sofá, tapetes e cortinas. Em Coronel Xavier Chaves as mulheres retomaram a tradição dos abrolhos, tipo de renda trançada com as mãos, produzindo toalhas de bandeja, panos de prato e outros produtos. Há ainda a produção de cachaça e artesãos que produzem trabalhos em pedra-sabão.