por Magno Córdova
“Meu compromisso é com meu próprio comprometimento”.
(Makely in “Autófago”)
Comentar o Autófago é quase que fazer uma checagem do corpo de Makely. Antropofagicamente, devorar cada órgão, cada célula, cada partícula. Como na esfinge, “me decifra ou te devoro”. Na audição do disco, conceda-se à devoração. “Não há saídas”, diria Itamar Assumpção, por mais que a idéia de antropofagia na canção popular seja hoje corriqueira. O Autófago vem colocá-la em evidência sob nova ótica: devoro-me a mim mesmo, pleonasmo meu e questão muito bem posta - poética e musicalmente - pelo artista. Proposta nada egocêntrica, como poderiam pensar os apressados, já que sugerida também àqueles que queiram apreendê-lo, ouvidos e coração atentos e abertos. Para tanto, “desliguem os aparelhos celulares”, dirá, por sua vez, Moreno, filho de Makely com a cantora Maísa Moura. Pois, até mesmo a presença desse filho recém chegado, na faixa de abertura do disco, me pareceu plena de significados. Todavia adianto: Autófago não é um disco de canções de ninar.
Sobre o que ouço, permito-me um delírio sócio-filosófico que pode ser considerado pedante, como tantos delírios dessa natureza: no universo das questões relativas ao que seja Brasil, sob o fio da canção popular, o Autófago soa como signo de maturidade retomada: não me refiro a do artista em questão, a meu ver ascendendo em permanência; me remeto à canção realizada no Brasil e – por que não? – estendo essa minha impressão ao estado de coisas do país. Não se trata de “retomada de linha evolutiva”, fórmula falastrona e presunçosa dos que ainda a professam. Digo do reconhecimento da consciência de que somos o que somos. Penso, por exemplo – e paradoxalmente –, em um Paulo Leminski ciente da isonomia dos egos: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”, estampada em bela camiseta que me foi presenteada, há anos, por Renato Negrão, parceiro musical de Makely. Portanto, maturidade aqui quer dizer consciência de si.
Por outro lado, pra além do pilar antropológico de biombos/mediações culturais, é preciso que se diga: a generosidade de Makely extrapola o objeto autoral que lhe pertence. Ela – essa generosa iluminação – está na postura com que, como um aedo andarilho, ele percorre o território do país carregando nas costas, literalmente, um volume de voz de gente e de instrumental diverso que, compactado, leva a cantar e tocar, onde quer que se encontre. Música que adota e aplica, que representa e lança, onde caminha e troca. E essa nobreza é incomum. Ele é nobre na relação com os pares.
Adiante disso, o que me fascina e causa incômodo são especialmente as canções do Autófago que me lançam em introspecção. Uma introspecção não melancólica, é bom que se diga. E isso – o incômodo –, de aparente contradição, é um bom sinal entre os critérios que considero em minhas audições. Justamente para o que parece ser um contraponto, ou uma dimensão individual daquela nobreza de que falei anteriormente. Há, como disse, canções no Autófago que me levam pr’um lugar que, involuntária e episodicamente, pratico; que só algumas canções são capazes de ativar em mim. Espaço do qual, no entanto – e, pela razão alegada -, não possuo o menor controle de onde se situa. Um lugar que não é familiar, mas é íntimo. Que não é estranho, mas misterioso.
“Plutão” é distante, penso. Será esse o lugar? A crer no que me ocorre quando ouço a canção de Makely com esse nome, sim. Melodicamente intimista, o texto de “Plutão”, por sua vez, é capaz de nos ensinar que não é tão grave assim viver só. Ser só, aqui, não constitui uma apologia à solidão, ao abandono, ao isolamento. Ao contrário, em sua leitura do ser só, Makely se reconhece no outro, na certeza de que o outro está, apesar de ausente. E tal ausência não causa qualquer transtorno: “não sinto mais falta de ar se você não vem”, “eu fico bem”. É essa identificação (ou seria mais apropriado pensar identidade?) que destaco do Autófago. É por aí que a evoco – a “Plutão”, de Makely – que, a meu ver, contribui para repensar as fronteiras ideológicas que historicamente apartam em dicotomias o indivíduo e o coletivo. Alguns poderiam dizer tratar-se de “antagonismos em equilíbrio”: “agora até mesmo quando bebo água a mágoa dessa sede me satisfaz”. A sonoridade de “Plutão” – mais precisa impossível – arremessa, no entanto, pra além do planeta, praquele canto misterioso de que falei, parte do exercício da introspecção.
Assim, também, me afeta “Equinócio” (que sacada sensacional do Rio das Velhas), de sonoridade intrigante e poesia no mesmo pé: quanta musicalidade reunida em vozes, texto e instrumentos. Quanto som “incômodo”, instigante. Quem disse que a noção de harmonia necessariamente mantém as coisas no lugar, em equilíbrio?
Mas não creio que seja o caso de transformar este comentário numa burocrática receita de audição, enumerando referências musicais e filiações poéticas que as canções do disco Autófago me sugerem. Considerando as renovadas descobertas que cada escuta me traz – e “Autófago”, a canção, de marcante registro vocal e instrumental, é rica nisso –, aconselho o compartilhamento dessa com a experiência de quem o queira. Digo, pra ilustrar, que ouvir o disco do Makely às vezes bate como caminhar num final de tarde e de chuva de um sábado da adolescência pela rua da Bahia até a avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. Numa época em que o Cine Metrópole ainda existia. Não dá pra sair ileso.
PS 1: creio ser oportuno dizer que o Autófago emparelha com O barulho do sol do meio dia, de Marcus Dias e Pantico Rocha, como dois dos discos mais ouvidos por mim nos últimos tempos;
PS 2: Makely, antes mesmo do Autófago, passou a integrar, numa classificação minha, o time de artistas formado por Clodo, Climério, Clésio, Brandão, Torquato Neto, Naeno, Maria da Inglaterra. Qual é a lógica? São músicos, intérpretes, compositores nascidos no estado do Piauí e muito bem-vindos ao meu aparelho de som;
Um comentário:
Maravilha Magno, fundamental esse espaço pra gente acompanhar seu trabalho!
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