(por Magno Córdova)
Em março de 1972, aconteceu no Rio de Janeiro o espetáculo em que “a Zona Sul carioca conheceu Luiz Gonzaga”.[1] Durante aquela temporada, o Teatro Tereza Raquel foi ocupado por uma plateia formada “por jovens da oposição, em sua maioria esmagadora”.[2] A aparição de Gonzaga naquele ambiente foi uma espécie de confirmação da influência pop sertaneja que a sua música exerceu na estética do movimento artístico/musical, interrompido em 1968 pelo AI-5 (Ato Institucional Nº5), denominado Tropicalismo: um dos roteiristas do espetáculo foi Carlos Capinam; o depoimento de Caetano Veloso, prestado à época para o jornal Última Hora, aparece reproduzido no encarte do disco com o registro do show. Nas palavras de Caetano, o espetáculo de Gonzaga só poderia ser comparado ao Rosa de Ouro[3], “pela justeza na colocação de artistas tão imensos no palco”.
O ano de 72 foi de expectativa no meio musical do país
quanto ao retorno definitivo dos cantores e compositores Caetano Veloso e
Gilberto Gil, vindos de um exílio forçado de três anos na Europa por imposição
do regime militar em vigor no Brasil desde 1964. Caetano Veloso, em disco lançado em Londres durante a expatriação, demonstrou
de maneira tão enfática o sofrimento causado pela ausência das terras
brasileiras – seja através da sua fotografia estampada na capa, ou nas
interpretações presentes no disco –, que o autor da única música não assinada
por ele naquele álbum, música considerada a tradução daquela desventura, assim
narrou sua reação ao ver e ouvir pela primeira vez o LP do conterrâneo ausente:
Eu ouvi falar que Caetano Veloso estava na Inglaterra e tinha gravado “Asa Branca”. (...) Um dia, em Fortaleza, estou passando em frente a uma loja de discos e o vendedor me chamou: “- Oh! Seu Luiz, o senhor já ouviu a ‘Asa Branca’ cantada por Caetano Veloso? - Não ouvi ainda não. - Quer ouvir? - Agorinha!”, e entrei na loja. Ele me deu a capa enquanto colocava o disco na vitrola. Essa capa com uma fotografia dele, com aquele casaco de inverno, expressava tanta tristeza, mas tanta tristeza, que meus olhos se encheram de lágrimas. Quando tocou o disco, aí eu chorei por dentro de mim. Mas quando ele fez aquela gemedeira do cantador sertanejo, aí eu não agüentei, chorei feio! Foi uma das maiores emoções que eu tive na vida. Muita gente achou aquilo de mau gosto. Mas eu que sou autêntico, eu senti que ele teve uma força muito grande em fazer aquela gemedeira em “Asa Branca”. Aí subiu muito o conceito que eu já tinha dele, eu o admirava. (...).[4]
(extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=uqfNMm8Or5A)
Vejamos alguns argumentos sobre a configuração disso que
estamos chamando de “uma imagem pop de
Luiz Gonzaga”.
O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. se baseia no
livro Baião dos Dois, de Mundicarmo
Maria Rocha Ferreti, para informar que “em 1951 Gonzaga assina contrato com a Colírio Moura Brasil. Este contrato foi
o primeiro de um artista popular com uma empresa, o que ocorrerá posteriormente
com a Shell, que lhe patrocina uma
excursão de caminhão pelo interior do Brasil, apresentando-se em toda cidade
com mais de quatrocentos mil habitantes.”
Detalhes sobre alguns contratos de Luiz Gonzaga com grandes
empresas podem ser também conferidos no livro Vida do viajante: a saga
de Luiz Gonzaga, de Dominique Dreyfus. Neste trabalho, a autora descreve
a curiosa situação envolvendo um “boato”, surgido no final dos anos 60 e
atribuído ao radialista Carlos Imperial, de que a música “Asa Branca” teria
sido gravada pelo maior fenômeno pop da
indústria fonográfica mundial até então, os Beatles.
Destaco, entre as diversas declarações de Gilberto Gil sobre
o “rei do baião”, um trecho de entrevista realizada em abril de 1968, onde Gil
constata que “Luiz Gonzaga foi, possivelmente, a primeira grande coisa
significativa do ponto de vista da cultura de massa no Brasil. Talvez o
primeiro grande artista ligado à cultura de massa, tendo sua música e sua
atuação vinculadas a um trabalho de propaganda, de promoção”.
Pouco depois, em 1971, ainda no exílio, Caetano Veloso
escreveu um texto como colaborador do jornal Pasquim onde afirma que “não é absolutamente verdade que Luiz
Gonzaga tenha abastardado a música nordestina numa redução comercial. Ele criou
formas novas adequadas a um público que comprava discos. (...) Ele foi o cara
que, no seu tempo, mais e melhor explorou a riqueza possível dos novos meios
técnicos. Ele inventou uma forma de conjunto, um tipo de arranjo, um uso do
microfone. Ele sugeriu uma engenharia de som. Se você é surdo, azar o seu. Luiz
Gonzaga – como Roberto Carlos – mereceu sua coroa de rei. E a honrou”.
A referida apresentação de Gonzaga no Tereza Raquel
intitulou-se “Luiz Gonzaga – Volta pra curtir”. O título do espetáculo faz
referência a uma suposta retomada da imagem do artista cultuado por Gil e
Caetano – mas também pelo próprio Capinam, por Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto
e demais envolvidos, em 1968, com o lançamento do disco/manifesto Tropicália
ou Panis et Circensis. Era a confirmação do destaque que sua obra sempre
ganhara, eleita uma das matrizes musicais inspiradoras das canções do
repertório tropicalista – como, de resto, um leque interminável de tendências e
vertentes que esses artistas incorporaram e assumiram estilisticamente.
(extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=UWC27MGcQac)
ps 1: “Asa branca” é uma parceria de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira;
ps 2: O texto de Caetano para o Pasquim se encontra reproduzido no livro VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d;
ps 3: A
entrevista com Gilberto Gil citada encontra-se em CAMPOS, Augusto.
Balanço da Bossa e outras bossas.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1968. 4ª ed. (1986).
[1] LUIZ
GONZAGA: ao vivo – Volta pra
curtir. CD BMG/RCA 74321855432, 2001. Texto de apresentação assinado por
Sérgio Cabral. (encarte). Gonzaga foi acompanhado, naquela apresentação, pelos músicos: Dominguinhos, Maria Helena, Toinho, Renato Piau, Porfírio Costa, Raimundinho e Ivanildo Leite;
[2] Id.
[3]
Espetáculo que teve sua estréia no
Teatro Jovem, Botafogo, Rio de Janeiro, em 1965. Dirigido por Hermínio Belo de
Carvalho, trazia em seu elenco os artistas Clementina de Jesus, Aracy Cortes,
Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescar do Salgueiro, Jair
do Cavaquinho, dentre outros.
[4]
DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed34, 1996. pp. 249 e 252.
(o texto aqui apresentado representa um fragmento da dissertação de mestrado Rompendo as entranhas do chão: cidade e identidade de migrantes do Ceará e do Piauí na MPB dos anos 70, defendida por mim, em 2006, no programa de Pós-Graduação em História da UnB - Universidade de Brasília. O texto da dissertação em sua íntegra foi recomendado ao Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música, em 2012).
(o texto aqui apresentado representa um fragmento da dissertação de mestrado Rompendo as entranhas do chão: cidade e identidade de migrantes do Ceará e do Piauí na MPB dos anos 70, defendida por mim, em 2006, no programa de Pós-Graduação em História da UnB - Universidade de Brasília. O texto da dissertação em sua íntegra foi recomendado ao Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música, em 2012).
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