domingo, 7 de junho de 2015

Sotaques sonoros: Clube da Esquina e Pessoal do Ceará. *

    Quem se ocupa a pensar a música realizada no Brasil - em particular a que envolve a formação e consolidação da polêmica sigla MPB - pode tranquilamente deduzir que a experiência tropicalista incorporou e, mais que isso, extrapolou e reconfigurou algumas práticas características da esfera musical da nossa cultura observadas até o seu advento. Comumente, alguns analistas darão destaque à obviedade, neste caso, de uma imprescindível aliança com o mercado, essa “instância quase hegemônica” em tudo. E não será novidade alguma chegar-se à conclusão de que os desdobramentos da Tropicália superaram em muito a capacidade criativa inicial dos seus protagonistas, legitimando e até mesmo enriquecendo e consolidando o seu arcabouço “manifesto”.

         Por outro lado, é possível apontar permanências ou mesmo retomadas de perspectivas (musicais, ideológico-discursivas) que passaram despercebidas sob um olhar menos atento, perspectivas supostamente abolidas do cenário musical brasileiro imediatamente após o surgimento daquele movimento. Em outras palavras, é possível deduzir do relato de uma experiência subsequente situada no contexto do mesmo segmento sociocultural – portanto, sua herdeira hipoteticamente natural - que a hegemonia do cosmopolitismo tropicalista não reinou suprema em solo brasileiro. Ao contrário, distanciados no tempo, é possível vislumbrar que ao lado da generosa ruptura e reformulação hierárquica de valores musico-poéticos e consequente distensão de fronteiras que os conformavam, assimilação da diversidade e liberdade formal criativa, não desapareceu no Brasil a defesa dos localismos, das identidades primeiras, das particularidades pontuais de uma dada região desse nosso vasto, múltiplo e complexo território. E essa permanência não implicou nem pode ser tomada como retrocesso ou reacionarismo cultural. Ela seria, antes, um dado característico da cultura do país.

           Eis, portanto, o relato que ilustra tais especulações.

           Em meados da década de 1970, na cidade do Rio de Janeiro, o cantor e compositor cearense Raimundo Fagner finalizava o seu terceiro disco individual, o primeiro dele pela gravadora CBS. Em meio às seções de gravação daquele LP, Milton Nascimento apareceu no estúdio para ouvir os fonogramas concluídos do repertório. Terminada a visita, Fagner acompanhou Milton até a porta do recinto e de lá voltou resmungando uma frase disfarçadamente ríspida e indignada:
- “Vocês são mesmo uma máfia!”.
Diante do “por que” de espanto lançado pelo seu interlocutor, Fagner contou que ao perguntar a opinião de Milton sobre as músicas que havia ouvido recebeu como resposta:
- “Claro que tem que estar bom! Tem mineiro tocando!”.

("Além do cansaço", de Brandão e Petrúcio Maia, faixa do LP Raimundo Fagner [vídeo extraído do Youtube]. No acompanhamento da música: Robertinho de Recife [Guitarra Leslie], Robertinho Silva [Bateria], Herman Torres [Baixo-elétrico] e Túlio Mourão [Piano]).

A provocação das palavras de Milton poderia ser facilmente identificada à figura do músico Wagner Tiso, presente naquele LP do cearense. Como se sabe, a trajetória de profissionalização musical de Wagner e Milton é indissociável, tendo eles iniciado amizade e aproximação musical já na década de 1950, na cidade mineira adotada pela família do menino Bituca e que também é a terra natal de Wagner: Três Pontas. Os “mineiros” estavam, pois, naquele momento, há cerca de duas décadas trabalhando juntos.

Entretanto, é de se pensar que seriam por demais inconsistentes as palavras dirigidas por Milton a Fagner – apesar de brincalhonas - se tomássemos essa referência na atuação relativamente reduzida, embora brilhante, do seu parceiro no disco do amigo nordestino: Wagner Tiso foi responsável pelos arranjos de cordas, mas “tocou” piano em apenas duas faixas do LP. Se levarmos em conta o ato de “tocar” como chave da questão colocada por Milton, mais plausível seria situarmos essa “defesa da mineiridade” estando subjacente à presença do músico a quem Fagner se dirigiu em seu retorno ao estúdio, na ocasião do diálogo mencionado: principal responsável pelos teclados daquele LP, intitulado Raimundo Fagner (1976), Túlio Mourão nasceu em Divinópolis, na região centro-oeste de Minas Gerais, e se sentiu particularmente lisonjeado ao saber da conversa.
           
            Para além do tom anedótico que o episódio sugere, sabe-se que um dos traços mais cultuados da produção musical mineira situada ao redor da obra de Milton Nascimento, conhecida como Clube da Esquina, é a preocupação com a estrutura harmônica de suas canções. O reconhecimento desta característica certamente valorizou o desempenho e deu visibilidade à figura do músico instrumentista que circulava naquele meio, sob o critério da acuidade criativa e do apuro técnico.
           
           Túlio Mourão, no entanto, não era do Clube. Quando ocorreu a conversa entre Fagner e Milton, Túlio jamais havia atuado profissionalmente com qualquer um dos componentes do Clube, seja em apresentações públicas ou em gravações de discos. Havia, sim, se aproximado de três dos seus futuros representantes, quando foi morar em Belo Horizonte, na década de 60: Lô Borges e Beto Guedes foram seus colegas nas aulas de teoria musical conduzidas por Toninho Horta.

           A atuação profissional de Túlio como instrumentista começou a se projetar nacionalmente em 1973, já morando no Rio de Janeiro, quando integrou os Mutantes e com eles gravou o LP Tudo foi feito pelo sol (1974). Com sua saída do grupo, o músico Liminha, também egresso dos Mutantes, o convidou para fazer parte da banda de apoio do compositor cearense Belchior. Este contato o aproximou dos demais cearenses radicados no Rio na época, como Fagner, que o escalou para o referido disco de 76.

           Apesar de terem se encontrado, ao menos uma vez, nos bastidores de um festival da canção de Belo Horizonte - segundo informa o letrista Márcio Borges em seu livro Os sonhos não envelhecem -, para Túlio Mourão foi no estúdio de gravação do LP de Fagner que se deu sua primeira grande aproximação com Milton Nascimento, onde este pode conhecer seu trabalho mais de perto.

           Como explicar, então, posição tão categórica assumida por Milton em seu diálogo com o amigo? A resposta pode descortinar-se reconhecendo em seu discurso a tradução de uma etapa significativa de afirmação da identidade musical mineira que assumira: no ano de 1975 – ou seja, no ano anterior ao Raimundo - ele gravou o disco Minas, onde se encontra uma particularidade que pode explicar a veemência de sua postura.

           Milton Nascimento nasceu na cidade do Rio de Janeiro, mas criou-se em Três Pontas, no sul de Minas Gerais. Foi somente com o LP Minas que veio a público oficialmente a relação de simetria entre o primeiro nome do estado adotivo e a junção das iniciais do seu próprio nome – MI de Milton e NAS de Nascimento. O que poderia ser considerado apenas uma feliz coincidência fortaleceu ainda mais os laços de identificação que sua trajetória musical evocava, ao associar sua imagem, de imediato, à toponímia local. Com o Minas o “movimento” do Clube da Esquina marcou definitivamente seu território; consolidou seu endereço e, com isso, sua tradição e historicidade. Além do mais, centralizou definitivamente sua produção na figura de um artista cujo nome passou, então, a se confundir com o próprio nome do estado de onde originava sua música. 

          Ao explicitar e consolidar o endereço da Esquina, o LP Minas estabeleceu, paradoxalmente, a conexão que faltava a uma representação para além do espaço doméstico. Perspectiva que superou os limites circunscritos a tal esquina, extrapolou o domínio da rua, do bairro e da cidade, da capital e do interior, pra alçar-se ao âmbito da nação. Isso sem contar a consistente projeção internacional que sua música e a de alguns companheiros de clube haviam alcançado até aquele momento e que se ampliaria em momento posterior. Para não deixar dúvidas quanto à definição do território tomado por si, Milton lançou, no ano da conversa com Fagner e na seqüência do LP Minas, o disco Geraes (1976).

          O que estava sendo posto era um processo múltiplo de afirmação cultural – local, regional, nacional e, também, cosmopolita – através do fortalecimento de uma simbologia geográfica e o sentimento a ela associado.  Não seria equivocado afirmar que nunca, antes deste processo, a música popular realizada e reivindicada em nome do estado de Minas Gerais havia alcançado status equivalente e tão convincente.

           Essa prática que adota referenciais geográficos em nomes artísticos - e em títulos de discos - não é uma peculiaridade de Minas. Ela está presente em diversos momentos da história fonográfica do Brasil. Aparece, por exemplo, com Manoel Pedro dos Santos (1870-1944), conhecido como Baiano, intérprete de “Isto é bom”, em 1902, e “Pelo telefone”, em 1917. Também marcou João Teixeira Guimarães (1883-1947), o João Pernambuco, que é considerado o introdutor da música nordestina no Rio de Janeiro.

            Entretanto, a sutileza da coincidência entre o nome do artista e o nome do estado natal (ou adotivo) foi e continua sendo uma exclusividade da experiência mineira capitaneada por Milton Nascimento, nos anos 70. A recorrência com que essa prática foi adotada em sua forma mais direta, na mesma época, é digna de nota: Novos Baianos, Ney Matogrosso, Fafá de Belém, Robertinho de Recife e Zé Ramalho da Parahyba surgiram no mesmo contexto. Do lado oposto à afirmação mineira de Milton, outra manifestação musical com ares de “movimento” foi muito bem sucedida no uso desse “recurso identitário”: é pela existência do Pessoal do Ceará que se torna possível entender a reação de Fagner à resposta de Milton. 

             Assim como os mineiros, que formalizaram a existência do Clube da Esquina a partir do LP homônimo lançado por Milton Nascimento e Lô Borges em 1972, a ideia musical coletiva vinda do estado do Ceará se disseminou a partir do disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem (1973). Seus porta-vozes imediatos foram Ednardo, Rodger Rogério e Tetty, intérpretes das canções ali reunidas. A eles se associavam os compositores das músicas inéditas apresentadas naquele LP, como Fagner, co-autor de uma delas. A bandeira era a mesma do Clube mineiro: falar em nome do seu estado.

             Portanto, Túlio Mourão foi o pivô de uma “disputa” envolvendo a música popular de Minas Gerais e Ceará; de uma luta por visibilidade das identidades artísticas claramente distintas dos dois estados. Não seria equivocado afirmar, como alguns estudiosos e jornalistas, que aquelas foram as duas “tendências” musicais regionais de maior consistência no cenário da música popular brasileira daquele momento. Ao menos do ponto de vista da ideia de “movimento”, de um trabalho orgânico envolvendo a atuação de diversos artistas.

            Curiosamente, da parte do fortalezense Fagner, veio uma atitude inédita em sua carreira, até então. O seu disco seguinte à conversa com Milton chama-se Orós (1977), em homenagem à cidade onde ele foi registrado, localizada na beira do açude de mesmo nome, na região centro-sul do Ceará. Foi nessa época, inclusive, que Fagner assumiu a direção artística do selo Epic, da gravadora CBS. Sob sua direção, foram produzidos discos de vários artistas nascidos em seu estado, mas também fora dele.[i] Fagner desempenhou importante papel para que se fizesse clara a qualidade instrumental destes discos. Os arranjos e instrumentações são a dimensão de destaque aí presente. Nomes como o do multi-instrumentista Hermeto Pascoal aparecem na direção musical de alguns destes LPs. Trata-se de um riquíssimo acervo musical desta segunda metade da década de 70. Trilhando um caminho diferenciado de Milton Nascimento, Raimundo Fagner atingiu o objetivo comum que se pode depreender da postura de ambos – ele e Milton, no diálogo travado em 76: a valorização do músico instrumentista brasileiro.

             Milton retomou com os companheiros a ideia original coletiva, lançando o LP Clube da Esquina 2, em 1978. Desta vez, agregando uma quantidade impressionante de músicos e amigos de origem diversa na gravação do disco. Como se o Clube da Esquina fosse a própria casa daquilo que se convencionou chamar MPB, entendida como a música que melhor representava o país, a identidade musical da nação.

              Quanto à Túlio Mourão, naquela segunda metade de década, continuou trabalhando com artistas cearenses. Por outro lado, seus laços musicais se estreitaram com Milton Nascimento, a quem passou a acompanhar em apresentações e gravações de discos a partir dos anos 80. Mas foi de sua participação no disco Brilho, do compositor cearense Stélio Vale (1951-2008), que se deu um outro importante encontro para a sua trajetória musical. Nas gravações desse disco, Túlio se aproximou do violonista Nonato Luiz. Do encontro entre o mineiro Túlio e o cearense Nonato, surgiu um disco com o significativo título de Carioca (1991).



Aqui, Túlio Mourão e Nonato Luiz interpretam a música "Carioca", de autoria de Nonato Luiz e faixa que dá título ao disco realizado pelos dois músicos (vídeo extraído do Youtube). 

* Uma versão modificada do presente texto foi aprovada pela Revista de História da Biblioteca Nacional e continua inédita. 


[i] Tornou-se conhecida, no meio musical, uma outra brincadeira sugerindo ser CBS a sigla para Cearenses Bem Sucedidos.


Notas Explicativas

1 - Além de Milton Nascimento, o Clube da Esquina era formado pelos mineiros Márcio Borges, Lô Borges, Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando Brant, Beto Guedes, o carioca Ronaldo Bastos, dentre outros. E, com alguma reserva, poderíamos incluir os demais músicos integrantes do grupo Som Imaginário, estrutura base de acompanhamento de Milton Nascimento nos discos que consolidaram o Clube: Laudir de Oliveira, Tavito, Fredera, Robertinho Silva, Luiz Alves, Nana Vasconcelos e Zé Rodrix;

2 - Não há um acordo, entre os próprios protagonistas sobre a existência formal do Pessoal do Ceará. No entanto, é possível pensar em unidade da música cearense, surgida na década de 1970, a partir dos trabalhos de Ednardo, Fagner, Belchior, Rodger Rogério, Tétty, Fausto Nilo, Brandão, Manassés, Wilson Cirino, Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, Amelinha (principalmente – alguns preferem considerar “exclusivamente” - em seu primeiro disco), dentre outros. Poderíamos incluir os irmãos Clodo, Climério e Clésio Ferreira que, embora nascidos no Piauí e tendo se fixado no Distrito Federal, se aproximaram dos compositores cearenses mais ou menos no período em que se deu a conversa aqui narrada. 

Depoimento de Túlio Mourão

É possível se falar em algum elemento diferencial, determinado pelo local de origem dos artistas nascidos na região Nordeste, que tenha sido uma contribuição estética (musical ou poética) daquela região à canção popular realizada no país na década de 70?
Túlio: Estou convencido que sim. Pelo lado das letras, o discurso poético que vinha do nordeste exibia um diferente equilíbrio equidistante entre o urbano, o rural, o político, o romântico e o existencial. Pelo lado musical, as estruturas melódicas e harmônicas mostravam uma distância da sofisticação da bossa nova ou do jazz, que remetia a distância física de Fortaleza ao Rio de Janeiro. A música exalava um frescor agreste que, de certo modo, refletia o quantum de informação que os músicos estavam elaborando na ocasião. Sugeria, também, que Fortaleza teria uma comunicação própria com o mundo, o seu próprio cosmopolitismo refletido, por exemplo, na maneira de valorizar e incorporar elementos do pop e o rock (que mineiros também faziam à sua maneira). Acho que isto tudo configura originalidade e riqueza, ou seja, singularidade que marca a inserção da música do Nordeste na MPB.


Capa do disco "Carioca", de Túlio Mourão e Nonato Luiz. 


Sugestões de leitura:

AIRES, Mary Pimentel. Terral dos sonhos – O cearense na música popular brasileira. Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará/Multigraf Editora, 1994.
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes:MPB anos 70  – 30 anos depois. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006.
BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da Música Popular Brasileira – Das origens à modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2008.


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