quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Autofagia – Maturidade como consciência de si

por Magno Córdova

Capa do disco Autófago, de Makely Ka, lançado em 2007.



Meu compromisso é com meu próprio comprometimento”.
(Makely in “Autófago”)

Comentar o Autófago é quase que fazer uma checagem do corpo de Makely. Antropofagicamente, devorar cada órgão, cada célula, cada partícula. Como na esfinge, “me decifra ou te devoro”. Na audição do disco, conceda-se à devoração. “Não há saídas”, diria Itamar Assumpção, por mais que a idéia de antropofagia na canção popular seja hoje corriqueira. O Autófago vem colocá-la em evidência sob nova ótica: devoro-me a mim mesmo, pleonasmo meu e questão muito bem posta - poética e musicalmente - pelo artista. Proposta nada egocêntrica, como poderiam pensar os apressados, já que sugerida também àqueles que queiram apreendê-lo, ouvidos e coração atentos e abertos. Para tanto, “desliguem os aparelhos celulares”, dirá, por sua vez, Moreno, filho de Makely com a cantora Maísa Moura. Pois, até mesmo a presença desse filho recém chegado, na faixa de abertura do disco, me pareceu plena de significados. Todavia adianto: Autófago não é um disco de canções de ninar.
Sobre o que ouço, permito-me um delírio sócio-filosófico que pode ser considerado pedante, como tantos delírios dessa natureza: no universo das questões relativas ao que seja Brasil, sob o fio da canção popular, o Autófago soa como signo de maturidade retomada: não me refiro a do artista em questão, a meu ver ascendendo em permanência; me remeto à canção realizada no Brasil e – por que não? – estendo essa minha impressão ao estado de coisas do país. Não se trata de “retomada de linha evolutiva”, fórmula falastrona e presunçosa dos que ainda a professam. Digo do reconhecimento da consciência de que somos o que somos. Penso, por exemplo – e paradoxalmente –, em um Paulo Leminski ciente da isonomia dos egos: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”, estampada em bela camiseta que me foi presenteada, há anos, por Renato Negrão, parceiro musical de Makely. Portanto, maturidade aqui quer dizer consciência de si.
Por outro lado, pra além do pilar antropológico de biombos/mediações culturais, é preciso que se diga: a generosidade de Makely extrapola o objeto autoral que lhe pertence. Ela – essa generosa iluminação – está na postura com que, como um aedo andarilho, ele percorre o território do país carregando nas costas, literalmente, um volume de voz de gente e de instrumental diverso que, compactado, leva a cantar e tocar, onde quer que se encontre. Música que adota e aplica, que representa e lança, onde caminha e troca. E essa nobreza é incomum. Ele é nobre na relação com os pares.
Adiante disso, o que me fascina e causa incômodo são especialmente as canções do Autófago que me lançam em introspecção. Uma introspecção não melancólica, é bom que se diga. E isso – o incômodo –, de aparente contradição, é um bom sinal entre os critérios que considero em minhas audições. Justamente para o que parece ser um contraponto, ou uma dimensão individual daquela nobreza de que falei anteriormente. Há, como disse, canções no Autófago que me levam pr’um lugar que, involuntária e episodicamente, pratico; que só algumas canções são capazes de ativar em mim. Espaço do qual, no entanto – e, pela razão alegada -, não possuo o menor controle de onde se situa. Um lugar que não é familiar, mas é íntimo. Que não é estranho, mas misterioso.
“Plutão” é distante, penso. Será esse o lugar? A crer no que me ocorre quando ouço a canção de Makely com esse nome, sim. Melodicamente intimista, o texto de “Plutão”, por sua vez, é capaz de nos ensinar que não é tão grave assim viver só. Ser só, aqui, não constitui uma apologia à solidão, ao abandono, ao isolamento. Ao contrário, em sua leitura do ser só, Makely se reconhece no outro, na certeza de que o outro está, apesar de ausente. E tal ausência não causa qualquer transtorno: “não sinto mais falta de ar se você não vem”, “eu fico bem”. É essa identificação (ou seria mais apropriado pensar identidade?) que destaco do Autófago. É por aí que a evoco – a “Plutão”, de Makely – que, a meu ver, contribui para repensar as fronteiras ideológicas que historicamente apartam em dicotomias o indivíduo e o coletivo. Alguns poderiam dizer tratar-se de “antagonismos em equilíbrio”: “agora até mesmo quando bebo água a mágoa dessa sede me satisfaz”. A sonoridade de “Plutão” – mais precisa impossível – arremessa, no entanto, pra além do planeta, praquele canto misterioso de que falei, parte do exercício da introspecção.
Assim, também, me afeta “Equinócio” (que sacada sensacional do Rio das Velhas), de sonoridade intrigante e poesia no mesmo pé: quanta musicalidade reunida em vozes, texto e instrumentos. Quanto som “incômodo”, instigante. Quem disse que a noção de harmonia necessariamente mantém as coisas no lugar, em equilíbrio?
Mas não creio que seja o caso de transformar este comentário numa burocrática receita de audição, enumerando referências musicais e filiações poéticas que as canções do disco Autófago me sugerem. Considerando as renovadas descobertas que cada escuta me traz – e “Autófago”, a canção, de marcante registro vocal e instrumental, é rica nisso –, aconselho o compartilhamento dessa com a experiência de quem o queira. Digo, pra ilustrar, que ouvir o disco do Makely às vezes bate como caminhar num final de tarde e de chuva de um sábado da adolescência pela rua da Bahia até a avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. Numa época em que o Cine Metrópole ainda existia. Não dá pra sair ileso.

PS 1: creio ser oportuno dizer que o Autófago emparelha com O barulho do sol do meio dia, de Marcus Dias e Pantico Rocha, como dois dos discos mais ouvidos por mim nos últimos tempos;

PS 2: Makely, antes mesmo do Autófago, passou a integrar, numa classificação minha, o time de artistas formado por Clodo, Climério, Clésio, Brandão, Torquato Neto, Naeno, Maria da Inglaterra. Qual é a lógica? São músicos, intérpretes, compositores nascidos no estado do Piauí e muito bem-vindos ao meu aparelho de som;

Literatura de Cordel

por Magno Córdova

Texto originalmente publicado em Pesquisas Especiais Barsa Society. Rio de Janeiro, Caravelas Produções Editoriais. 2003.

A literatura popular, consagrada no Brasil com o nome de Cordel, está associada aos menestréis da Provença, região situada ao sul da França. O provençal, língua românica falada desde o século XI pelos poetas líricos daquela região, “em sua forma literária, serviu de expressivo instrumento aos trovadores” locais (1). A Europa medieval desenvolveu três grandes circuitos de peregrinação a locais sagrados do cristianismo, com intenso trânsito das mais diversas culturas e povos, que estão na base do incremento dessa manifestação literária: um deles, a Lombardia – ao norte da Itália – para onde convergiam obrigatoriamente aqueles indivíduos que visitavam a Santa Sé, em Roma; um outro era a Galícia – ao norte da Espanha –, onde se localiza Santiago de Compostela, cidade que supostamente possuía as relíquias do apóstolo Tiago; por fim a Provença, onde se reuniam os peregrinos que atravessariam o mar Mediterrâneo com destino à Jerusalém, a Terra Santa. Ao longo desses percursos, era comum as caravanas de andarilhos se depararem com as figuras que, à época, passaram a se tornar costumeiras em diversas regiões daquele continente: o trovador, narrador de episódios heroicos de cavalaria, feitos milagrosos e amores cortesãos. Em função desses movimentos populacionais, nos últimos séculos da Idade Média européia os poetas provençais tiveram seu estilo narrativo incorporado pelos poetas ambulantes da Península Ibérica.

A poesia popular narrativa em sua procedência se caracterizou por romper com a fala oficial das elites, originária que é de uma cultura iletrada. Essa poesia chegou ao Brasil trazida pelos portugueses que por aqui aportaram após a chegada de Cabral. Consta que, por decisão régia, em terras lusitanas os folhetos eram vendidos por cegos. Até o século XIX, sua permanência em território brasileiro se deveu à tradição oral que a caracteriza. A partir de então, a utilização do nome cordel tornou-se mais freqüente, pois denominava com maior fidelidade a estrutura em que essa poesia passou a ser disseminada: através de folhetos vendidos em feiras, procissões e romarias. Dispostos em barbantes ou cordões (como roupas nos varais – daí o nome cordel), esses folhetos compunham as tendas ou barracas dos “cordelistas”. É de fins de século XIX a prática de registrar a poesia popular assim descrita. Antes disso, porém – e também na fase posterior quando passa a haver registro gráfico –, a poesia oral representou para as populações analfabetas que delas usufruíam um precioso veículo de informação, dado o seu caráter crônico e sua tradução da realidade.

Usualmente contendo capa ilustrada, os folhetos significaram também a retomada e popularização de uma arte que utiliza uma técnica de impressão anterior à invenção da tipografia: a xilogravura, ou gravura em madeira. No Brasil é impossível dissociar da Literatura de Cordel a xilogravura, assim como também o é a figura do cantador. Se por um lado, a valorização da memória através da utilização de quadras rimadas e versos com mesma metragem em sua forma representa um facilitador na reprodução oral dessa poesia, por outro, o suporte trazido pelo acompanhamento do canto e do instrumento musical torna a execução pública do poema inscrito no folheto de cordel mais lírica e dinâmica. Por conseguinte, mais monumental e memorável – digno e possível de se guardar na memória. O cantador, assim como o objeto folheto, é quem veicula, quem instrumentaliza o sonho do narrador poeta. Porém, ocupa um primeiro plano no que se refere à sedução exercida pelo conteúdo do folheto em seu consumidor final – quando este é um espectador iletrado – se comparado ao próprio folheto. O folheto só ocupa o mesmo patamar de importância e sedução que pertence ao cantador em um segundo momento: quando aquele que o escreve já tem o nome consolidado entre o seu público, quer esse público seja formado por indivíduos iletrados ou não. Isso porque, mesmo a pessoa que não foi alfabetizada faz questão de adquirir o folheto com a perspectiva de levá-lo até a algum conhecido que saiba ler, o que normalmente se realiza para uma platéia numerosa.

Durante boa parte do século XX, a produção literária em formato de cordel ficou restrita ao ambiente dos ambulantes que a comercializavam em mercados e feiras livres e aos cantadores violeiros, tocadores de pandeiros e ganzás que faziam uso dos versos dos folhetos para acompanhar seus instrumentos; ou, ainda, mantendo a tradição oral através da improvisação, dos repentes, emboladas e cocos em desafios. Sua inclusão como gênero literário brasileiro digno de estudo e classificação passa a ser cogitado por alguns folcloristas no decorrer do século. Em algumas análises sobre a importância sócio-cultural dos “folhetos de feira” e os possíveis rumos tomados por esse fazer poético em sociedades “modernas e industrializadas”, dois momentos são tidos como de grande importância para a sua valorização entre os intelectuais brasileiros: em 1955, o escritor e folclorista Orígenes Lessa escreveu para a revista Anhembi o artigo “Literatura popular em versos”; em fins da década seguinte, o estudioso francês Raymond Cantel publicou também um artigo intitulado “Lês prophéties dans la littérature populaire du Nordeste” no jornal francês Le Monde e, logo em seguida, na revista Caravelle da Universidade de Toulouse.

Antes, porém, e desde os primórdios dos debates travados em busca de uma definição para a literatura popular feita no Brasil, já vinham ocorrendo divergências de ordem conceitual: um grupo de respeitados estudiosos do assunto se opôs à utilização da expressão Literatura de Cordel para designar esse tipo de poesia. O escritor potiguar Câmara Cascudo integra essa ala e em seu Dicionário do Folclore discorre acerca da apropriação do termo “Literatura Oral” como o mais convincente para tratá-lo, dando uma outra dimensão em sua conceituação: “O termo foi criado por Paul Sébillot (1846-1918) no seu Litérature Orale de la Haute Bretagne, 1881, e reúne o conto, a lenda, o mito, as adivinhações, provérbios, parlendas, cantos, orações, frases-feitas tornadas tradicionais ou denunciando uma estória, enfim todas as manifestações culturais, de fundo literário, transmitidas por processos não gráficos”(2). Na tentativa de esclarecer o termo genérico popularizado e consagrado, Cascudo nos informa que, diante de tão numerosa produção, o percentual das manifestações registradas e conservadas escritas representa a minoria. Para ele, “Literatura Oral compreende dança e canto e mesmo os autos populares, conservados pelo povo oralmente, embora conheçamos fontes impressas.”(2).

Dicotomias passam a permear os debates em torno da Literatura de Cordel ao serem abordadas as relações entre cultura popular e de elite, ou oficial. Nota-se através de estudos dos conteúdos temáticos dessa literatura oral a apropriação que ela faz da cultura oficial e erudita em adaptações que consideram o tempo e o local para os quais estão sendo adequadas. Comumente são identificados, nos discursos das populações-alvo dessa literatura, determinados conhecimentos de conteúdos acadêmicos e de obras literárias mundialmente reconhecidas como clássicas e que tiveram sua trama conformada a uma outra realidade pelos autores de cordel: é o caso da História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, episódio corriqueiramente versado pelos poetas de cordel. A flexibilidade espontaneamente demonstrada pela tradição cultural popular ao incorporar novos e estranhos elementos ao seu discurso permite vislumbrar uma integração, à sua maneira desinteressada, em relação aos interesses da cultura dominante. Paradoxalmente, um questionamento que se faz sobre o sentido da memória na cultura popular (3) – e em particular nessa sua manifestação que a literatura oral ou de cordel representa – é o seu suposto caráter conservador e inflexível, incompatível com as transformações sociais, as evoluções formais e a presença de conteúdos contestatórios. Para o folclorista mineiro Luiz Fernando Trópia, a preservação das manifestações culturais do povo de um país só é possível se se distinguir os “aspectos progressistas dos de acomodação e aceitação da desigualdade social...”(4) numa perspectiva combativa e em uma clara alusão ao pensamento daqueles que acham que ao folclorista é reservado o papel de “conservar”, no sentido de retroceder com intuito de manter um tempo e um espaço de poder pré-existentes.

Mais do que apontar para possíveis reproduções de uma ideologia do dominador, a poesia que desponta nos folhetos representa a realização de um sonho utópico, de um ideal de liberdade tão caro aos indivíduos que constituem seu público imediato, seja o que a produz, seja o que a consome. Nas palavras de Orígenes Lessa, a Literatura de Cordel “em grande parte é uma literatura de evasão, de fuga aos problemas amargos do cotidiano, à miséria circundante. E para as massas incultas e sofredoras a que se dirige, é esse provavelmente o aspecto mais atraente. Em seus devaneios (...) está possivelmente a sua grande força” (5).

Qualquer que seja o estudo ou análise que trate da Literatura de Cordel no Brasil, o espaço geográfico freqüentemente referido como o lugar privilegiado à sua produção é o Nordeste do país. Existem várias explicações que justificam esta tendência: a Literatura de Cordel se dissemina naquela região antes mesmo do Nordeste existir como um espaço delimitado uniformemente em seus traços físicos e humanos no imaginário popular. A visibilidade que temos hoje do que chamamos Nordeste passou a se instituir nas primeiras décadas do século XX, quando passam a ser comuns os discursos em torno da criação de uma identidade nacional. As dimensões continentais do país e uma incipiente rede de comunicação entre suas diversas localidades, associadas à centralização do poder em torno da capital da República, tornaram essa busca de identidade o lugar de confronto entre os regionalismos, uma afirmação da cultura local como hegemônica e representativa da nação.(3). O analfabetismo, a seca, a violência do cangaço, os messianismos sebastianistas, foram as imagens propagadas pela ideologia do centro-sul do país em detrimento da região que se constituiu no Nordeste. Imagens de uma realidade propícia à produção de uma literatura mágica onde o heroísmo, o convívio com a violência, o milagre, a superação da miséria e os mistérios da natureza que ambientam a origem rural desse povo encontram solo fértil em sua imaginação. Ambiente que vai encontrar na palavra dita a lei que rege as relações cotidianas de seus grupos. Daí o impulso imediato dos cantadores, dos poetas de cordel em meio a uma população por se alfabetizar através do encantamento e magia inscritos no romanceiro.

Consolidado o espaço do “Romanceiro Popular” além do seu território imediato, surgiu entre aqueles que pretendiam entendê-lo um dos pontos mais controversos que envolve o estudo da Literatura de Cordel: sua classificação por temas. Com a valorização e multiplicação dos estudos acadêmicos que tomaram por objeto os poemas de cordel a partir da década de 1970, as pesquisas e tentativas de classificação elaboradas pelos especialistas precursores são retomadas e recriadas. Um sem-número de classificações temáticas invadiu o universo do romanceiro popular transformando-o naquilo que o professor cearense Eduardo Diatahy B. de Menezes chamou de “uma querela inútil” e infecunda, um terreno minado (6). Sugerindo uma nova hermenêutica – que se pretende histórica -, Menezes aponta para uma reconstituição fundada em uma periodização que identifique pelo menos três momentos de criação na história de nossa Literatura de Cordel: o primeiro, segundo ele, apresenta-se como uma recusa da história do país e da região onde é realizado ao concentrar-se em torno da tradição dos romances medievais de cavalaria, em especial na figura de Carlos Magno e seus Pares. Aqui, história se confunde com estória; no segundo momento ocorre a incorporação de elementos da história local, surge a figura do herói nordestino e são introduzidos temas urbanos; por fim, a etapa onde se vê reduzido o isolamento cultural imposto pelo meio em que se produz o cordel, com a “inserção de novos códigos e relações sociais mais típicos da modernização atingida pelos setores dominantes da sociedade nacional” (6).

Muito criticados pela inconsistência que apresentam, não deixam de ser valiosas, no entanto, as contribuições daqueles que tomaram o caminho classificatório do romanceiro popular inscrito em cordel: Leonardo Mota, Câmara Cascudo, Manuel Diegues Jr., Alceu Maynard, M. Cavalcanti Proença, Orígenes Lessa, Roberto C. Benjamin, são alguns desses classificadores. Através desses estudos pode ser possível apreciar a existência de “folhetos obscenos. Mas são minoria. Em geral os poemas populares são de fundo religioso e emprestam às suas histórias um sentido construtivo e moralista. Muitos combatem em tom profético ou messiânico o relaxamento dos costumes, a corrupção dos governos, a desagregação da família” (5). Há casos de um mesmo folclorista que propõe mais de uma classificação temática para a produção do cordel: Ariano Suassuna “adota dois níveis ou gêneros de discurso, um erudito e outro popular”(6). O primeiro nível, aqui apresentado em sua versão reformulada, sugerida pelo escritor paraibano em uma Antologia organizada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, é considerado mais sintético que as demais classificações por temas existentes. Assim, Suassuna divide a produção do cordel em 9 ciclos: 1) Ciclo heróico, trágico e épico; 2) Ciclo do fantástico e do maravilhoso; 3) Ciclo religioso e de moralidades; 4) Ciclo cômico, satírico e picaresco; 5) Ciclo histórico e circunstancial; 6) Ciclo de amor e de fidelidade; 7) Ciclo erótico e obsceno; 8) Ciclo político e social; e 9) Ciclo de pelejas e desafios. Essa seria a forma erudita de classificação proposta por Suassuna. A segunda proposta, a popular, se encontra inserida no corpo de sua obra “Romance d’A Pedra do Reino”, e ganha voz através de um personagem desse livro, o velho João Melchíades. Segundo o personagem/autor, são sete os principais tipos de romances versados: os romances de amor; os de safadeza e putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo, os de espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os da profecia e assombração (7). Afora a tentativa de enquadramento das obras do cordel em diversos ciclos, cronistas e comentaristas têm realizado também estudos em que põem em destaque um determinado assunto ou personagem com grande número de ocorrência em livretos, designando assim um ciclo para o personagem em questão: Getúlio Vargas, Lampião, Padre Cícero, são alguns dos notáveis mais explorados. A figura do demônio recebeu tratamento diferenciado em texto escrito pelo jornalista cearense Mário Pontes que justifica o destaque dado a esse personagem dedicando-lhe um ciclo que chamou de “Ciclo do logro do diabo”, pois o diabo aparece em “primeiro plano em numerosos contos, lendas, cantigas, autos, romances, desafios e representações pictóricas...” e também como “invisível operador de bastidores” (8).

“O velho ficou riquíssimo
em sua propriedade
satanás trabalhou tanto
porém foi tudo debalde...”(8)

Por outro lado, existe um conjunto de cantorias e pelejas que se constitui em uma especialidade à parte no folheto de cordel e que se caracteriza por reunir dois cantadores em desafio. Segundo o professor Manuel Diegues Júnior, são célebres os desafios entre Bernardo Nogueira e Preto Limão, Zé Pretinho do Tucum com o Cego Aderaldo, o de Serrador com Carneiro, o de João Martins com Antônio Pelado, o de Leandro Gomes de Barros com João Martins de Ataíde – um dos mais antigos – e aquele que é considerado, possivelmente, o mais célebre: de Inácio da Catingueira com Francisco Romano do Teixeira, ocorrido no pátio do mercado de Patos, na Paraíba, em 1870 (8). Pela força de expressão e qualidade da criação que possuem, essas pelejas de cantorias têm freqüentemente recebido novas edições em folhetos, o que as mantêm permanentes dentro do universo de cordel. É também através delas que mais explicitamente se consegue defrontar com a diversificação de gêneros dessa categoria. Os poetas cantadores Francisco Linhares e Otacílio Batista organizaram material, que se encontra disponível em rede de informação eletrônica, onde apontam para pelo menos vinte formas de se fazer poesia de cordel (9). Sebastião Nunes Batista enumera mais de cem. No entanto, para que uma estrutura poética receba o título de popular é preciso que possua uma forma especial de ser cantada, independentemente de como são ordenados seus versos: “a possibilidade musical tem de estar presente mesmo que o poema seja somente declamado” (10). Linhares e Batista informam que dentre as formas utilizadas por poetas clássicos e que são usadas pelos cantadores encontram-se a Quadra, a Décima, a Sextilha em decassílabo com rimas cruzadas e sua variante. A mais comum, talvez por ser considerada a mais fácil, é a Sextilha, caracterizada por estrofes de seis versos – ou seis pés – com sete sílabas cada e que apresentam rimas em seus versos pares. Esse gênero é originário da Oitava de Ariosto, o mesmo gênero utilizado por Camões para escrever “Os Lusíadas”. Exemplos de Sextilhas encontram-se nos versos do repentista paraibano Francisco Pequeno:

“Uma morrinha no gado
É derrota em fazendeiro,
E um cavalo ruim
Derrota dum vaqueiro!
A derrota do país
É dever no estrangeiro!”(9)

Ou em José Francisco de Souza:

“O cantador repentista
Canta por convicção
Tem presença de espírito
Para qualquer narração
Representa muito bem
As belezas do sertão” (10)

Outro gênero bastante conhecido e muito apreciado por poetas e intérpretes da música popular brasileira é o Martelo Agalopado. Em disco recente lançado pela cantora maranhense Rita Ribeiro encontra-se um desses martelos, composição de João Linhares intitulada “O conforto dos teus braços”:


“Oito horas de voo num concorde (1)
Cinco dias num barco mar adentro (2)
Sete noites dormindo ao relento (3)
Sete ciganas lendo a minha sorte (4)
Quatro dias, em pé, no trem da morte (5)
Vinte léguas montado num jumento (6)
Sete mil flores no meu pensamento (7)
E eu trilhando os últimos espaços (8)
Pra ficar no conforto dos teus braços (9)
Qualquer coisa no mundo eu enfrento (10)


Valentia de pai ou de irmão 
Concorrência com o astro do momento 
Temporal, tempestade, chuva e vento 
Holocausto, hecatombe e tufão 
Desemprego, palestra e sermão 
Tititi, coqueluche, casamento 
Pé de ponte, mansão, apartamento 
Paparazzi, sucessos e fracassos 
Pra ficar no conforto dos teus braços 
Qualquer coisa no mundo eu enfrento 

Ladroíce, mutreta, malandragem 
Álcool, droga, barato, passamento 
Amnésia, larica, esquecimento 
Roubalheira e má politicagem 
Cabaré, palacete, sacanagem 
Fome, greve, motim, acampamento 
Confusão, batalhão, fuzilamento 
Reclusão, solidão, sonho aos pedaços 
Pra ficar no conforto dos teus braços 
Qualquer coisa no mundo eu enfrento ” (11)

Assim como o Galope à beira-mar e a Parcela, a estrutura do Martelo Agalopado é inspirada na Décima – estrofe de dez versos de sete sílabas. A criação desse martelo é atribuída ao violeiro paraibano Silvino Pirauá Lima e se constitui de estrofes com dez versos em decassílabo: o primeiro verso rima com o quarto e o quinto; o segundo verso rima com o terceiro; o sexto, com o sétimo e o décimo; e o oitavo, com o nono. Outra característica do Martelo Agalopado é a existência dos motes – versos de uma sentença dada que encerram todas as estrofes – e da glosa, como são chamados os versos que desembocam no mote. Além das formas exemplificadas, encontramos na classificação da Literatura de Cordel por gênero o Sete Pés, os Moirões ou Mourões, os já citados Galope à beira-mar, Décima e Parcela, Quadrões, Meia-Quadra, Gabinete, Ligeira e Gemedeira, dentre outros. Uns mais usuais que outros.

O que se percebe sobre as possibilidades criadoras da Literatura de Cordel é que ela atinge diversas esferas: das pessoas vítimas do êxodo e da migração utilizarem-se da sua produção poética para alfabetizarem seus pares em regiões industrializadas do país – fazendo com que atuem em frentes mais amplas do mercado de trabalho ao criar seu próprio cordel – até no encontro que promove entre as diversas castas sociais ao narrar episódios recentes da história da humanidade através das mais diferentes óticas, o que caracteriza uma história imediata – documento de suma importância para o estudo do imaginário popular.

Se hoje constata-se que representantes da cultura letrada (ou erudita) tanto demonstram o seu fascínio, como se apropriam do falar poético do cordel em sua estrutura formal para fazer seu próprio “livreto”; a utopia alimentada por uma sociedade que mantém e debate tal manifestação – utopia de se ver transformada ao adotar aquilo que é fundado e preservado a partir do povo – pode não ser um desejo inatingível. Ponto para o popular, para a cultura real – e, no caso, para a Literatura de Cordel – na construção de uma almejada identidade nacional.


Bibliografia:

1 – FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986.
2 – CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore. Rio de Janeiro, Ediouro, s/d. 9ªed.
3 – ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.
4 – TRÓPIA, Luiz Fernando. "Cultura Popular e mudança social. Cultura Popular como Identidade Nacional". Texto a ser publicado.
5 – LESSA, Orígenes. Citado por PROENÇA, Ivan C. In: A ideologia do cordel. Rio de Janeiro, Ed. Brasília/Rio, 1977.
6 – MENEZES, Eduardo Diatahy B. de – In: “Das classificações temáticas da Literatura de Cordel: uma querela inútil”. Jornal de Poesia. Aviable from world wide web:
7 – SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta: romance armorial popular brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976. A versão reformulada da classificação erudita de Suassuna foi reproduzida de MENEZES, op. Cit.
8 – PONTES, Mário. Doce como o diabo: o demônio na Literatura de Cordel. Rio de janeiro, Ed. Codecri, 1979. A estrofe recolhida faz parte do folheto intitulado “O velho que Enganou o Diabo” e, segundo Pontes, não há indicação do seu autor.
9 – DIEGUES Jr., Manuel. “A Literatura Oral Tradicional e sua tradição ibérica”. In: BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da Literatura de Cordel. Fundação José Augusto, 1977.
10 – LINHARES, Francisco e BATISTA, Otacílio. “Gêneros da Poesia Popular”. Jornal de Poesia. Aviable from world wide web:
11 – LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Popular. São Paulo, Brasiliense, 1992. 5ª ed.
12 – RIBEIRO, Rita. Comigo. São Paulo, Abril Music e MZA Music, 2001. CD2405001-2. Um outro bom exemplo de Martelo Agalopado registrado em disco pode ser encontrado no CD Xangai – Mutirão da vida, Quarup, KCD019. A faixa tem o título “Natureza” e foi composta por Ivanildo Villanova e Xangai.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Movimento Armorial

Por Magno Córdova
(junto à CMFL - Comissão Mineira de Folclore)

Texto publicado originalmente em Pesquisas Especiais Barsa Society. Rio de Janeiro: Caravelas Produções Editoriais. 2004.

O boi mandingueiro e o cavalo misterioso, de Gilvan Samico, reprodução extraída do livro Em Demanda da Poética Popular – Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.


O substantivo Armorial nos remete à arte heráldica, coletânea de brasões da nobreza de uma nação ou de uma província. Adjetivado, o termo representa um neologismo criado pelo escritor Ariano Suassuna para batizar o movimento artístico brasileiro que teve sua primeira aparição pública em princípios da década de 1970 na cidade de Recife, e do qual é considerado “mestre e mago”: o Movimento Armorial. Fundamentado a partir de um espaço-tempo bem definido – o nordeste rural e sertanejo do Brasil e os artistas que ali produziam -, o Movimento Armorial se revelou formalmente ao público no dia 18 de outubro de 1970. Na ocasião, o DEC - Departamento de Extensão Cultural - da Universidade de Pernambuco organizou na Igreja São Pedro dos Clérigos da capital do estado uma exposição de artes plásticas acompanhada do concerto de uma orquestra recém-criada: a Orquestra Armorial de Câmera de Pernambuco, órgão do Conservatório Pernambucano de Música. A Orquestra foi fundada por Suassuna junto ao violinista e regente Cussy de Almeida, que a dirigiu. Em texto publicado na contracapa de um dos discos da Orquestra, Suassuna – então diretor do DEC – escreveu que a pretensão dos participantes do Movimento era “realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares de nossa cultura” (1). Justificando a escolha do nome dado ao movimento, explicava que, em primeiro lugar, foi escolhido “porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas” (1). Respondendo aos detratores que julgavam sua postura ultrapassada e elitista, o escritor esclarecia que “(...), sendo ‘Armorial’ o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma Arte muito mais popular – ou ligada ao popular – do que qualquer outra coisa” (1).
Do ponto de vista do conteúdo de sua produção, podemos entender a Arte Armorial como aquela que tem por traço comum o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (ou Literatura de Cordel); a música de viola, rabeca e pífano que acompanha os cantadores, emboladores e repentistas; e a Xilogravura, ou gravação em madeira, freqüentemente utilizada para ilustrar as capas dos folhetos de cordel. Assim, o universo artístico cultural compreendido pelo Movimento abrange a literatura, o cinema e o teatro, através da poesia narrativa dos versos de cordel; as artes plásticas, como a gravura, a pintura, a escultura, a talha, a cerâmica ou a tapeçaria, através da xilogravura; e a música, através do canto e acompanhamento instrumental dos versos e estrofes do mesmo cordel.
Caracterizado pela “primazia da criação sobre a teoria”, como um “Movimento sem manifesto”, o Armorial se proclamou após já se ter definido a sua arte. Isso porque as obras, as criações artísticas e literárias, os encontros e as amizades entre os artistas foram anteriores à sua concepção e organização teórica. Por isso, para nos aproximar mais da sua essência, é necessário fazer um retrocesso no contexto que o lançou.
Para os historiadores, “a evolução do Movimento permite distinguir três fases em sua história” (2): a primeira fase é denominada preparatória e abarca o período de 1946 a 1969; a segunda, chamada fase experimental, vai de 1970 a 1975; e, por fim, a fase “romançal”, a partir de 1976.
A fase “preparatória” iniciou-se em torno do TEP – Teatro do Estudante de Pernambuco; do TPN - Teatro Popular do Nordeste; da SAMR – Sociedade de Arte Moderna do Recife; e do Atelier Coletivo. Destaca-se nesse período – além de Suassuna - a presença do romancista e teatrólogo Hermilo Borba Filho e dos artistas plásticos Abelardo da Hora, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Naquele ano de 1946, Suassuna e Irapuan de Albuquerque organizaram um encontro de cantadores e violeiros no Teatro Santa Isabel, iniciativa de repercussão escandalosa, já que aquele espaço era tido como o templo da cultura de elite do Nordeste. Suassuna publicou, então, um artigo onde aponta a importância do romanceiro e da viola nordestina. Apesar de seu trabalho estar voltado inteiramente para o teatro, algumas características da arte armorial já se manifestaram nesse momento através da aproximação com Samico e Brennand e o interesse pela música popular e seus compositores. Na década de 1950, escreveu um capítulo sobre o maracatu para o livro “É de Tororó, maracatu”, organizado por Hermilo Borba Filho (2). Na década seguinte, já reconhecido nacional e internacionalmente como autor de teatro - principalmente pela tradução e representação de sua obra-prima “O auto da Compadecida” em países como França, Alemanha, Espanha, Polônia e outros - Suassuna “assume aos poucos o papel de mestre e conselheiro de parte da jovem geração” (2), em particular entre seus alunos da disciplina de estética que ministrava na UFPe. Da música, arte que indiscutivelmente evoluiu mais rápido no âmbito do Movimento, estão presentes nessa primeira fase aqueles que seriam os patronos e colaboradores da fase subseqüente: compositores como Jarbas Maciel, Capiba, Cussy de Almeida, Clóvis Pereira e Guerra Peixe.
A fase seguinte, experimental, coincide com a nomeação de Suassuna para a direção do DEC em fins de 1969 e seu desligamento daquele departamento em 1974, quando dá lugar a Marcus Accioly, poeta da Geração de 65 do Recife e que havia se integrado ao Movimento desde 1969 junto à Orquestra Armorial. A criação da arte Armorial dessa fase esteve respaldada teoricamente não por um manifesto, mas por uma série de escritos que permitem definir com clareza a posição do Movimento: O Programa da Exposição de Artes Plásticas, de 1970, supracitada; o “Almanaque Armorial do Nordeste”, coluna semanal do Jornal da Semana, que funcionou como tribuna onde se viu refletido e explicado o desenvolvimento das artes no Movimento; e a brochura intitulada Movimento Armorial, publicada pela UFPe em 1974, e que condensa as discussões realizadas nos espaços anteriores; revelam as referências estéticas e as pretensões artísticas do Armorial. “Ariano Suassuna qualifica seu romance ‘A Pedra do Reino’ como romance Amorial popular brasileiro” (3). Se a música, como foi dito, é a arte que mais evoluiu dentro do Movimento, “é na literatura narrativa, campo privilegiado da criação suassuniana, que a literatura Armorial realiza-se plenamente” (2). E foi justamente a obra “O Romance da Pedra do Reino”, lançada em 1971 por Suassuna, que se tornou porta-bandeira, o modelo literário e cultural para o movimento por ele liderado: “(inspirou) composições musicais, poemas e quadros (...). As gravuras de Suassuna que integram o livro (foram) reproduzidas pela tapeçaria armorial...” (2).
A consolidação do Movimento veio nessa fase experimental, com a segunda edição da exposição de arte Armorial ocorrida na Igreja do Rosário dos Pretos de Recife, em 26 de novembro de 1971. A música do Movimento esteve representada pelo Quinteto Armorial, grupo fundado naquele ano e que contava em sua formação com os músicos Antônio José Madureira (viola nordestina, tambor e zabumba), Edílson Eulálio Cabral (violão, ganzá e matraca), Fernando Torres Barbosa (marimbau, flauta e tambor), Egildo Vieira do Nascimento (posteriormente substituído por Antônio Fernandes de Faria) (flauta) e Antônio Carlos Nóbrega de Almeida (violino, rabeca e caixa). Instrumentos como o marimbau - de som áspero e monocórdio – e a rabeca – instrumento popular antecessor do violino -, utilizados pelo Quinteto, foram fabricados e restaurados pelo artesão popular nordestino João Batista de Lima. Dentro da perspectiva musical do Movimento, a música executada pelo Quinteto foi a que mais se aproximou dos anseios de Suassuna. Sua amizade e proximidade com os componentes do grupo encontraram no talento de Antônio José Madureira, jovem compositor e músico, o ponto de partida para aquilo que desejava: um grupo com instrumentos musicais populares. Dois famosos violeiros, Lourival Batista e Diniz Vitorino Ferreira, dirigiram a iniciação de Madureira na viola nordestina. No concerto inaugural do Quinteto, a orientação musical apresentada deixou claros os rumos da música Armorial: a primeira parte é dedicada à música barroca européia (Scarlatti, Fernando Ferandière, Vivaldi e Haendel); a segunda parte apresentou peças do barroco brasileiro descobertas e restauradas pelo padre Jaime Diniz (uma de Luís Álvares Pinto e outra de José de Lima); a terceira parte, Armorial, mostrou o “Improviso”, a “Chamada” e o “Repente Armorial”, de Antônio Madureira; e duas peças de um colaborador dos músicos armoriais: José Generino de Luna. Nas gravações do seu primeiro disco intitulado “Do Romance ao Galope Nordestino” (que apresenta na capa a gravura “Alexandrino e o pássaro de fogo”, de Gilvan Samico) (4), o repertório escolhido pelo Quinteto retomou algumas peças de compositores da fase preparatória como o “Mourão”, de Guerra Peixe e “Toada e desafio”, de Capiba; além de criações do próprio grupo. No segundo álbum, “Aralume” (capa com a gravura “O triunfo da virtude sobre o demônio”, de Samico) (5), Madureira compôs uma suíte em quatro movimentos inspirada em “O homem da vaca e o poder da fortuna”, teatro de Suassuna lançado em 1958. Nos dez anos de existência, o Quinteto Armorial foi aclamado pela crítica especializada, recebendo prêmios de melhor disco do ano (Revista Veja e Jornal do Brasil, em 1974; e JB, em 1976) e melhor conjunto instrumental de 1974 pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Excursionou pelo país e pelo exterior, chegando a se fixar em Campina Grande, na Paraíba, quando passou a trabalhar no âmbito da Universidade Federal daquele estado.
Capa do disco intitulado Sete Flechas, último trabalho do Quinteto Armorial, lançado em 1980 pela gravadora Discos Marcus Pereira. Pode-se dizer, segundo critérios de fontes aqui consultadas, que este disco pertence à fase Romançal.


A fase experimental chegou ao fim em um momento de divergências exacerbadas entre o Quinteto e a Orquestra Armorial. Suassuna e Madureira se unem e criam uma nova Orquestra – mantendo a “espinha dorsal” do Quinteto -, o que oficializa o rompimento de Cussy de Almeida com o Movimento e o início de uma nova fase: a Romançal. Ocupando o cargo de Secretário de Cultura de Recife, Suassuna procura desenvolver uma política de pesquisa e criação artística voltada para as estruturas culturais existentes no município: Orquestra Sinfônica do Recife, Coral Guararapes, Orquestra Popular, Balé Popular do Recife e Orquestra Municipal. Romançal, nome da nova fase e nova orquestra é outro neologismo, alusão que serve “para exaltar o romance, definido como ‘composição polifônica” e a uma “reminiscência do termo romani, designando a língua falada pelos ciganos da Europa Ocidental...” (2). Nesse ponto, o Movimento perde adesões e redefine sua área de atuação, que se vê reduzida: a fase romançal, iniciada em 18 de dezembro de 1975 com um concerto da Orquestra homônima no Teatro Santa Isabel, é avaliada como aquela que “reafirma a ligação privilegiada com a cultura popular” (2) ao mesmo tempo que elimina a maioria das controvérsias e confusões criadas e mantidas em torno da palavra que foi modelo da criação dessa mesma cultura: Armorial. Em 1981, Suassuna declara abandonar a literatura, mantendo apenas sua atividade docente durante os dez anos em que esteve desligado do mercado literário.
No disco “Sete Flechas” (capa com layout de Aníbal Monteiro sobre quadro de Fernando Torres) (7) - último da carreira do Quinteto Armorial -, tem-se um exemplo de criação musical que ilustra o caráter essencialmente oral da improvisação, da riqueza do canto e da música das palavras que somente o teatro – arte que mais se aproxima da “armoralidade” – consegue reencontrar. Tocado e cantado por Antônio Carlos Nóbrega, o “Martelo Agalopado”, escrito por Suassuna em 1961, é o primeiro registro de canto na música do Quinteto Armorial e “segundo sua classificação do Romanceiro Popular Nordestino, faz parte da poesia Improvisada, pertencendo à família das Décimas, no caso o Martelo” (6).


Martelo Agalopado

Ariano Suassuna

O galope sem freio dos cavalos,
os punhais reluzentes do cangaço,
a prata dos Bordões, no seu traspasso,
o pipocar dos rifles e seus estralos.
O sino, com seus toques de badalo,
as onças com seus olhos amarelos,
o lajedo que é trono e que é castelo,
o ressonar do Mundo – esta Onça parda,
o vento, o sangue, o sol, a madrugada,
e eu tinindo o galope do martelo.

Na prisão destas pedras fui atado,
aos olhos garça duma Cega fera.
O sangue da pobreza é uma Pantera
que estraçalha meu povo injustiçado.
Onde reina a justiça do sonhado,
senhores do baraço e do cutelo?
Ela vem! E eu, ao fogo do flagelo,
mesmo em dura prisão assim metido,
na cadeia dos anos vou, detido,
retinindo o galope do martelo.

E as abelhas, o mel acre e dourado,
e o angico, e o tambor, e a baraúna.
O concriz auri-rubro, a caraúna,
os cardeiros de frutos estrelados.
Chora a Vida: - “Ai meu sangue assassinado!”
Grita o Mundo: - “Na pedra eu me cinzelo!”
E o Tempo: - “Tudo eu queimo e esfarelo!”
Quanto a mim, aos açoites da virola,
vou, nas cordas de prata da viola,
retinindo o galope do martelo.


Sendo um processo especial de cantar, usado pelos cantadores nordestinos, o martelo acima ilustra como a relação com o folheto de cordel e a cantoria dos repentistas e cantadores está no alicerce da criação armorial, usados como modelo por todos os poetas do Movimento. Associadas a essa “poética da voz”, as gravuras e imagens que ilustram tanto os folhetos como as capas e encartes dos discos desempenham um importante papel na transmissão oral desse universo Armorial popular brasileiro.

Referências Bibliográficas e Discográficas:

(1) – A Música e o Movimento Armorial. Ariano Suassuna. Contracapa do LP Orquestra Armorial. São Paulo: Continental, 1974.
(2) - Em Demanda da Poética Popular – Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.
(3) – Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
(4) – Do Romance ao Galope Nordestino. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1974.
(5) – Aralume. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1976.
(6) - Sete Flechas. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1980.