sexta-feira, 4 de maio de 2018

Uma rede no peito, um berro

(por Magno Córdova)

Houve uma camiseta que circulou por BH durante um tempo com dizeres e imagens discretos, quase imperceptíveis, estampados na altura do peito, possíveis de serem lidos e vistos em seus detalhes apenas pelos que se detinham em frente àquele que a estava usando.

A imagem que acompanhava os dizeres chamava um pouco mais atenção do que as palavras escritas, por estas serem ainda mais miúdas: tratava-se de um casal de beija-flores copulando, protagonizando aquilo que poderia ser chamado de "transa esvoaçante". 


Da frase logo abaixo da imagem não me lembro exatamente, mas seu conteúdo era algo do tipo: "Derrubem as matas, poluam os rios, destruam as florestas e podem ir todos morar nos quintos dos infernos!", ou em endereço mais preciso e menos singelo.

Um desabafo individualizado que surtia efeito vibrante naquele que o apreendia: um misto de felicidade, orgulho e consciência política - em seu sentido mais pleno. Sem contar o riso incontido pelo inusitado da dimensão íntima, evocada na sexualidade em pleno voo daqueles pássaros insuspeitos, quase sagrados. Era a inserção do indivíduo no comum coletivo, aludindo à intimidade privada - mesmo que entre beija-flores.

Junte-se a isso a incontornável sensação de alívio equivalente a um berro dado que, à época, motivou em mim uma paráfrase mental associando a situação com o conteúdo do disco e da música de Ednardo: "Do boi só se perde o berro!". A perda como ganho, como algo que não só se mantém, mas mantém e retoma a dignidade e a existência dos corpos - dessas "vacas" retalhadas que somos, fadados à mutilação pelo consumo. O berro como único item desprezado, não devorado pela indústria que, entretanto,  torna-se único instrumento capaz de detê-la por denúncia, contra seu estrago.

(Dá série Cupins, de Humberto Espíndola, de 2002. Cf.: http://www.humbertoespindola.com.br/001-index_frameset.htm )

O contato com essa camiseta representava bem mais do que um dia inteiro de jornalismo televisivo, em termos de mobilização e eficácia à ideia de pertencimento. E é de se pensar se há, hoje em dia,  mensagem tão sutilmente subliminar e ao mesmo tempo reta sem qualquer filiação institucional a ela associada. Não se tratava ali de defesa e construção ideológica, mas sim do óbvio mais elementar: a defesa da própria existência. Engendrava o privado no público e vice-versa, sem escapatória.

Se comparado com as novas formas de comunicação, aquele outdoor errante, diminuto, no peito, soa hoje como ingênuo recurso e se situa na longa duração da primordialidade das redes com as quais nos habituamos. Tomado isoladamente, no entanto, seus efeitos parecem menos banais e mais duradouros, prolongando em reflexo sua permanência, projetando-se anacronicamente no tempo sem memória da virtualidade. 

Ecoa, assim, o que fica e dignifica, como o Berro do compositor cearense na canção evocada (a letra se encontra logo em seguida ao vídeo):

(vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=wfYqXn00Onc )

BERRO
(Ednardo)

Os novos, os novos
Corações aos pulos
As novas, as novas
Transações e sustos
As velhas câmeras não fotografam minha emoção
As velhas câmeras não fotografam minha emoção 
Sentados num banquinho alto 
Microfone e violão
Quilografados comportadamente, somos umas vacas
Retalhados neste açougue, atenção! 
Os novos, os novos 
Patins, coxão e filé
As velhas coisas, as velhas coisas 
Pelancas, ossos, quem quer? 
Do boi só se perde o berro 
Só se perde o berro e é 
Justamente o que eu vim apresentar
Justamente o que eu vim apresentar