terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ismael Silva

(por Magno Córdova)

Jurujuba era, no início do século XX, uma bela praia que possuía pouco mais de uma dezena de moradias, um cemitério construído ainda no tempo dos jesuítas, o Hospital Paula Cândido e uma colônia de pescadores. Situada no recôncavo da Baía de Guanabara, na parte pertencente a Niterói, foi em Jurujuba que nasceu Milton de Oliveira Ismael Silva, no ano de 1905. Com a morte do pai, Ismael foi morar no bairro carioca do Estácio de Sá, na idade de três anos. Apesar de viver humildemente, o menino Ismael freqüentou a escola e se destacou como aluno aplicado, tendo completado o ginásio aos 18 anos após uma passagem pelo curso profissionalizante do Liceu de Artes e Ofícios da então capital da República. Nessa época, o adolescente Ismael já havia composto seu primeiro samba, intitulado “Já desisti”. Na letra deste samba, o rapaz de quatorze anos dizia ter desistido do amor, do trabalho, da bebida e que só faltava desistir do baralho. Ismael costumava dizer que tinha sido criado em três bairros sob a mesma jurisdição: Rio Comprido, Catumbi e Estácio. Foi nos terreiros e adjacências desses bairros que passou a ficar famoso. Sua intenção era fazer um samba carnavalesco onde todos pudessem se divertir à vontade, sem obedecer à imposição das autoridades e sem precisar cumprir regulamentos. Em 1928, reuniu os integrantes dos blocos de sujos do Estácio e fundou a primeira escola de samba do Rio de Janeiro, a “Deixa Falar”. Segundo o próprio Ismael, a expressão “Escola de Samba” foi cunhada por ele próprio em analogia à Escola Normal do Estácio, que teria formado os “professores” do samba. Um dado polêmico da vida de Ismael diz respeito à ligação musical/comercial existente entre ele e o cantor Francisco Alves: consta que Chico Alves gravava as musicais do compositor em troca da coautoria das mesmas. Ismael teve diversos parceiros, dentre eles Nilton Bastos e Noel Rosa. Noel foi quem entrou no lugar de Nilton Bastos, quando este faleceu em 1931, na formação do Trio dos Bambas do Estácio, que contava com Ismael e Chico Alves. Ismael faleceu no Rio de Janeiro, em 14 de março de 1978.

(vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=gwm4DdHx7H8)

Se você jurar

(Ismael Silva, Nílton Bastos e Francisco Alves)

Se você jurar que me tem amor

Eu posso me regenerar
Mas se é para fingir, mulher
A orgia assim não vou deixar
Muito tenho sofrido
Por minha lealdade
Agora estou sabido
Não vou atrás de amizade
A minha vida é boa
Não tenho em que pensar
Por uma coisa à-toa
Não vou me regenerar
A mulher é um jogo
Difícil de acertar
E o home como um bobo
Não se cansa de jogar
O que eu posso fazer
É se você jurar
Arriscar a perder
Ou desta vez então ganhar

Uma fonte de leitura para aprofundamento sobre o compositor e seu tempo é São Ismael do Estácio – O sambista que foi rei, de Maria Thereza Mello Soares. Publicado pela FUNARTE, em 1985.  

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Atonalismo no Brasil

(por Magno Córdova)


Em 1937, chegou ao Brasil o alemão Hans Joachim Koellreuter. Atuando como professor e compositor na Europa, Koellreuter introduziu o vetor da modernidade musical no Brasil a partir das concepções atonais dodecafônicas. O dodecafonismo é um sistema de composição musical criado pelo austríaco Arnold Schoenberg e se baseia no livre emprego dos doze semitons da escala temperada (Dó – Dó sustenido – Ré – Ré sustenido – Mi –Fá, etc.). À frente do grupo-revista Música Viva, Koellreuter tornou-se o representante de um projeto de vanguarda musical no Brasil que incomodou a hegemonia do discurso nacionalista. Em 1950, importunado com a linha de trabalho trazida pelo alemão, o compositor nacionalista Camargo Guarnieri tornou público, no Jornal “O Estado de São Paulo”, um documento sob o título “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, onde combate a postura atonal da dita vanguarda.

A influência de Koellreuter se fez sentir na obra de vários músicos brasileiros do período: Guerra Peixe e Cláudio Santoro se formaram sob a orientação do professor alemão. Tom Jobim foi seu aluno.

Em 1960, emergiu o grupo paulista de vanguarda que deu uma formulação teórica mais consistente ao projeto iniciado com Koellreuter. Fizeram parte desse grupo os compositores Gilberto Mendes, Rogério Duprat, Willy Corrêa de Oliveira, Damiano Cozzela e Júlio Medáglia. Esses músicos encontraram apoio tanto nas teorias da poesia concreta dos irmãos Campos e de Décio Pignatari quanto na Orquestra de Câmara de São Paulo, dirigida por Olivier Toni. A incursão de alguns desses compositores, na segunda metade da década de 1960, entre os músicos populares e a indústria cultural será notável: Rogério Duprat e Júlio Medáglia estiveram entre os arranjadores de vários dos primeiros discos do grupo baiano que tomou a frente do movimento da Tropicália.

(Documentário "Koellrether e a música invisível", da Série Documenta Vídeo Brasil. Direção: Cacá Vicalvo. Roteiro e Edição: Luiz Fernando Ramos. Realização STB Rede SescSenac de Televisão. documentario@redestb.com.br - extraído do Youtube). 

Sugestão de leitura: “O modernismo e a música”, de José Miguel Wisnik, incluído em Sete ensaios sobre o modernismo, de vários autores, publicado pela FUNARTE/Instituto Nacional de Artes Plásticas, em 1983.

Elis – para a ampliação de uma escuta comum de música

(Texto/resenha originalmente escrito como piloto de programa de rádio educativa).

(por Magno Córdova

Na abertura do seu livro intitulado “História e Música”, o professor e pesquisador paulista Marcos Napolitano afirma que há um lugar privilegiado para se pensar a história sociocultural do país. Neste lugar, seria possível encontrar a tradução dos dilemas e a veiculação das utopias sociais que formam o nosso mosaico nacional: trata-se da música popular realizada no Brasil.

Para Napolitano, ser brasileiro e falar português representa uma vantagem em relação às outras nações quando o assunto é música popular, já que somos – sem nenhuma dúvida – uma das grandes usinas sonoras do planeta. Assim, o privilégio está não só em ouvir música, mas também pensar a música. E não apenas pensar a música brasileira, mas pensar e repensar o mapa mundi da música ocidental a partir desse mosaico que compõe a nossa música popular.

                Ao longo do livro, Napolitano oferece análises que justificam esta sua primeira e essencial afirmação, mostrando como se constituiu ao longo da experiência histórica brasileira uma determinada forma musical; e de que maneira esta forma musical se configurou como um campo de estudos na atualidade. O autor mostra, portanto, que a música popular feita no Brasil pode e deve ser tomada como objeto para se pensar a sociedade e a história do país.

                Um dos pontos centrais da reflexão de Napolitano diz respeito ao problema de como se processa a recepção da informação cultural, neste caso, de como os ouvintes de música popular recebem e se apropriam das informações transmitidas pela música. Segundo ele, devemos considerar que todos os ouvintes são receptores: tanto os chamados “ouvintes comuns” (que ele chama de receptor-fruidor), como os compositores e músicos profissionais (chamados receptores-criadores).

Napolitano sugere que seja feita a revisão de uma certa imagem - tornada clássica - sobre a esfera da música popular, onde normalmente estes dois blocos de receptores são tratados isoladamente. Para ele, “mesmo sem conhecimento técnico, o ouvinte da música popular possui dispositivos para dialogar com a música”. Ele não é componente de uma massa de teleguiados, de um bloco coeso, de um agrupamento caótico de indivíduos irredutíveis em seu gosto e sensibilidade. Por sua vez, o compositor ou músico profissional é, em certa medida, um ouvinte, e sua “escuta musical” é fundamental pra sua própria criação.

                O exemplo que Napolitano toma para ilustrar sua análise é o de Elis Regina. Quando apareceu para o grande público com sua voz expressiva e potente, por volta de 1965, Elis causou um certo mal-estar nos círculos bossanovistas mais radicais. Revelando um outro leque de escutas pessoais (a influência do bolero dos anos 50, por exemplo), como também o dado de seu surgimento vinculado a uma mídia específica (a TV) e, ao mesmo tempo,  reivindicando para si a tradição da bossa, Elis abalou a estrutura de audiência de música popular no Brasil. Ela ampliou o público da música popular ao incorporar novos segmentos socioculturais cujo gosto não havia sofrido, de maneira mais profunda, o impacto da bossa nova. Elis trouxe para a audiência, ou para a estrutura de recepção da música brasileira “moderna”, um público mais ligado ao rádio e ao samba-canção.

                Deste processo teria surgido, ainda segundo Marcos Napolitano, a moderna MPB, que em fins dos anos 60 tornou-se uma verdadeira instituição cultural brasileira. 


Elis canta “Reza”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, faixa que abre o disco “Samba – eu canto assim”, de 1965 ( vídeo extraído do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=GK1kJTzatdM). 

Por amor andei, já
Tanto chão e mar
Senhor, 
Já nem sei
Se o amor não é mais
Bastante pra vencer 
Eu já sei o que vou fazer
Meu Senhor uma oração
Vou cantar pra ver se vai valer

Laia ladaia sabatana Ave Maria
Laia ladaia sabatana Ave Maria

Ó meu santo defensor
Traga o meu amor

Laia ladaia sabatana Ave Maria
Laia ladaia sabatana Ave Maria

Se é fraca a oração
Mil vezes cantarei

Laia ladaia sabatana Ave Maria
Laia ladaia sabatana Ave Maria

Livro de referência: 

História e música – história cultural da música popular / Marcos Napolitano. – Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 120 p. (Coleção História e... Reflexões, 2)  

domingo, 22 de novembro de 2015

Luiz Gonzaga volta pra curtir

(por Magno Córdova)

Em março de 1972, aconteceu no Rio de Janeiro o espetáculo em que “a Zona Sul carioca conheceu Luiz Gonzaga”.[1] Durante aquela temporada, o Teatro Tereza Raquel foi ocupado por uma plateia formada “por jovens da oposição, em sua maioria esmagadora”.[2] A aparição de Gonzaga naquele ambiente foi uma espécie de confirmação da influência pop sertaneja que a sua música exerceu na estética do movimento artístico/musical, interrompido em 1968 pelo AI-5 (Ato Institucional Nº5), denominado Tropicalismo: um dos roteiristas do espetáculo foi Carlos Capinam; o depoimento de Caetano Veloso, prestado à época para o jornal Última Hora, aparece reproduzido no encarte do disco com o registro do show. Nas palavras de Caetano, o espetáculo de Gonzaga só poderia ser comparado ao Rosa de Ouro[3], “pela justeza na colocação de artistas tão imensos no palco”.


O ano de 72 foi de expectativa no meio musical do país quanto ao retorno definitivo dos cantores e compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, vindos de um exílio forçado de três anos na Europa por imposição do regime militar em vigor no Brasil desde 1964. Caetano Veloso, em disco lançado em Londres durante a expatriação, demonstrou de maneira tão enfática o sofrimento causado pela ausência das terras brasileiras – seja através da sua fotografia estampada na capa, ou nas interpretações presentes no disco –, que o autor da única música não assinada por ele naquele álbum, música considerada a tradução daquela desventura, assim narrou sua reação ao ver e ouvir pela primeira vez o LP do conterrâneo ausente:
Eu ouvi falar que Caetano Veloso estava na Inglaterra e tinha gravado “Asa Branca”. (...) Um dia, em Fortaleza, estou passando em frente a uma loja de discos e o vendedor me chamou: “- Oh! Seu Luiz, o senhor já ouviu a ‘Asa Branca’ cantada por Caetano Veloso? - Não ouvi ainda não. - Quer ouvir? - Agorinha!”, e entrei na loja. Ele me deu a capa enquanto colocava o disco na vitrola. Essa capa com uma fotografia dele, com aquele casaco de inverno, expressava tanta tristeza, mas tanta tristeza, que meus olhos se encheram de lágrimas. Quando tocou o disco, aí eu chorei por dentro de mim. Mas quando ele fez aquela gemedeira do cantador sertanejo, aí eu não agüentei, chorei feio! Foi uma das maiores emoções que eu tive na vida. Muita gente achou aquilo de mau gosto. Mas eu que sou autêntico, eu senti que ele teve uma força muito grande em fazer aquela gemedeira em “Asa Branca”. Aí subiu muito o conceito que eu já tinha dele, eu o admirava. (...).[4]

(extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=uqfNMm8Or5A)

Vejamos alguns argumentos sobre a configuração disso que estamos chamando de “uma imagem pop de Luiz Gonzaga”.

O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. se baseia no livro Baião dos Dois, de Mundicarmo Maria Rocha Ferreti, para informar que “em 1951 Gonzaga assina contrato com a Colírio Moura Brasil. Este contrato foi o primeiro de um artista popular com uma empresa, o que ocorrerá posteriormente com a Shell, que lhe patrocina uma excursão de caminhão pelo interior do Brasil, apresentando-se em toda cidade com mais de quatrocentos mil habitantes.”

Detalhes sobre alguns contratos de Luiz Gonzaga com grandes empresas podem ser também conferidos no livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga, de Dominique Dreyfus. Neste trabalho, a autora descreve a curiosa situação envolvendo um “boato”, surgido no final dos anos 60 e atribuído ao radialista Carlos Imperial, de que a música “Asa Branca” teria sido gravada pelo maior fenômeno pop da indústria fonográfica mundial até então, os Beatles.

Destaco, entre as diversas declarações de Gilberto Gil sobre o “rei do baião”, um trecho de entrevista realizada em abril de 1968, onde Gil constata que “Luiz Gonzaga foi, possivelmente, a primeira grande coisa significativa do ponto de vista da cultura de massa no Brasil. Talvez o primeiro grande artista ligado à cultura de massa, tendo sua música e sua atuação vinculadas a um trabalho de propaganda, de promoção”.

Pouco depois, em 1971, ainda no exílio, Caetano Veloso escreveu um texto como colaborador do jornal Pasquim onde afirma que “não é absolutamente verdade que Luiz Gonzaga tenha abastardado a música nordestina numa redução comercial. Ele criou formas novas adequadas a um público que comprava discos. (...) Ele foi o cara que, no seu tempo, mais e melhor explorou a riqueza possível dos novos meios técnicos. Ele inventou uma forma de conjunto, um tipo de arranjo, um uso do microfone. Ele sugeriu uma engenharia de som. Se você é surdo, azar o seu. Luiz Gonzaga – como Roberto Carlos – mereceu sua coroa de rei. E a honrou”.

A referida apresentação de Gonzaga no Tereza Raquel intitulou-se “Luiz Gonzaga – Volta pra curtir”. O título do espetáculo faz referência a uma suposta retomada da imagem do artista cultuado por Gil e Caetano – mas também pelo próprio Capinam, por Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto e demais envolvidos, em 1968, com o lançamento do disco/manifesto Tropicália ou Panis et Circensis. Era a confirmação do destaque que sua obra sempre ganhara, eleita uma das matrizes musicais inspiradoras das canções do repertório tropicalista – como, de resto, um leque interminável de tendências e vertentes que esses artistas incorporaram e assumiram estilisticamente.

(extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=UWC27MGcQac)



ps 1:  “Asa branca” é uma parceria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira;

ps 2: O texto de Caetano para o Pasquim se encontra reproduzido no livro VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d;

ps 3: A entrevista com Gilberto Gil citada encontra-se em CAMPOS, Augusto. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968. 4ª ed. (1986).





[1]  LUIZ GONZAGA: ao vivo – Volta pra curtir. CD BMG/RCA 74321855432, 2001. Texto de apresentação assinado por Sérgio Cabral. (encarte). Gonzaga foi acompanhado, naquela apresentação, pelos músicos: Dominguinhos, Maria Helena, Toinho, Renato Piau, Porfírio Costa, Raimundinho e Ivanildo Leite;

[2] Id.
[3] Espetáculo que teve sua estréia  no Teatro Jovem, Botafogo, Rio de Janeiro, em 1965. Dirigido por Hermínio Belo de Carvalho, trazia em seu elenco os artistas Clementina de Jesus, Aracy Cortes, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescar do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, dentre outros.
[4] DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed34, 1996. pp. 249 e 252. 

(o texto aqui apresentado representa um fragmento da dissertação de mestrado Rompendo as entranhas do chão: cidade e identidade de migrantes do Ceará e do Piauí na MPB dos anos 70, defendida por mim, em 2006, no programa de Pós-Graduação em História da UnB - Universidade de Brasília. O texto da dissertação em sua íntegra foi recomendado ao Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música, em 2012).