domingo, 24 de janeiro de 2016

Paulinho da Viola: de letra

(por Magno Córdova)

A palavra é Paulinho. 
Paulinho da Viola.
Pra dizê-la, João invoca! 
João evoca!
João invocado.
João de Cabeça de Nego
João, como um João qualquer
João de sangue afro-tupi
A palavra Paulinho baixa 
na mesma oca
No chão da taba
Do terreiro
Na boca
(Aqui, João, ímpar! Paulinho lá!
Extraído do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=lPGo171UliA)

Cabeça de nego
(João Bosco) 

Cacurucai eu tô
Perrengando tô
De Aniceto é o jongo
Ô Donga Sinhô
O Sinhô Donga
É Gagabirô
Gagabirá
Ô zimba cubacubá
Ô zimba cubão
Zimba cubacubá
O zimbacu
Ô João da Bahiana!
Ô Candeia!
Ô Ya Quelé Mãe
Ô Mãe Quelé Mãe
Ya Quelé Mãe
Ô Clementina!
Ô Yaô Pi
Ô Piaô Xi
Yaó Xi
Ô Pixinguinha!
Ô Batista de Fá
Ô ária de Bach
Choro de Paulo da Viola!
Ô zimba cubá
Ô zimba cubão
Silas de Oliveira Assumpção!

Elifas Andreato retrata em tela a temática musical de Paulinho

Paulinho é de 42, mesmo ano de Gil, de Caetano, de outros tantos.
O pai de Paulinho, César, era violonista, tocava no Época de Ouro e chamava os amigos para tocar em casa.
O menino treinou seu ouvido ouvindo em sua casa o pai, Pixinguinha, Jacob e outros desse time de onças.
Mas o pai de Paulinho não queria o filho músico ("perguntou-me se eu queria estudar filosofia, medicina ou engenharia. Tinha eu que ser doutor"). 
Mesmo assim, o rapaz se envolveu de tal forma com a música e o samba que foi lá pra Jacarepaguá reunir gente e sambar, tocar cavacos e violões. Compor.

(extraído do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=LgyhLaSog0g)

A voz do morto
(Caetano Veloso)

Estamos aqui no tablado
Feito de ouro e prata
E de filó de nylon

Eles querem salvar as glórias nacionais
As glórias nacionais, coitados

Ninguém me salva
Ninguém me engana
Eu sou alegre
Eu sou contente
Eu sou cigana
Eu sou terrível
Eu sou o samba

A voz do morto
Os pés do torto
O cais do porto
A vez do louco
A paz do mundo
Na Glória!

Eu canto com o mundo que roda
Eu e o Paulinho da Viola
Viva o Paulinho da Viola!
Eu canto com o mundo que roda
Mesmo do lado de fora
Mesmo que eu não cante agora

Ninguém me atende
Ninguém me chama
Mas ninguém me prende
Ninguém me engana

Eu sou valente
Eu sou o samba
A voz do morto
Atrás do muro
A vez de tudo
A paz do mundo
Na Glória!

Paulinho ficou amigo dos grandes que o ouviam e o queriam por perto.
Foi parar em Madureira. Foi como compositor.
Começou a fazer canções na primeira metade dos 60.
Estudou contabilidade e trabalhou em banco, onde reconheceu, certa vez, Hermínio Belo em sua agência bancária.
Ficaram amigos e parceiros.
Conheceu Cartola por esse tempo também.

Acompanhou muita gente boa no Zicartola, ao cavaco ou violão.
Foi tocando com Zé Keti que este lhe incentivou a cantar suas próprias músicas.
Foi também Zé Keti, junto com Sérgio Cabral, quem acrescentou a seu nome artístico o "da Viola". Ficou!

Juntou-se a Elton, Nelson Sargento, Nescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, Zé da Cruz, Oscar Bigode (seu primo, que já o havia levado para a Portela, após Jacarepaguá).
Juntou-se, em morada, a Capinam, Gil, Caetano e mais outros tantos, quando foi pro Solar da Fossa, em 65
(Batatinha, um mestre do samba de Salvador. Extraído do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=JXOth-JRoRs)

Ministro do samba
(Batatinha)

Eu que não tenho um violão
Faço samba na mão
Juro por Deus que não minto
Quero na minha mensagem prestar homenagem
E dizer tudo que sinto
Salve o Paulinho da Viola
Salve a turma de sua escola
Salve o samba em tempo de inspiração

O samba bem merecia
Ter ministério algum dia
Então seria ministro Paulo César Batista Faria (bis)

Paulinho canta, compõe, toca com elegância e simplicidade.

Impressiona que Paulinho tenha sido reverenciado não só pelos pares de sua mesma geração, posto sempre no patamar daqueles que o ensinaram na casa do pai, ainda pequeno.
Paulinho aparece contundente, indisfarçável, na homenagem feita por compositores reconhecidamente talentosos de outros nichos referenciais.

(Elza Soares, de Itamar, por Elza: Paulinho está aí.Extraído do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=VWG2dPI2GIY)

Elza Soares
(Itamar Assumpção)

Desde que me entendo por gente
Elza soares da vida
Das armas brancas, químicas quentes
Música é a preferida
Eu disse
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida

Desde que me entendo por gente
Eu sambo, eu faço o que gosto
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco
Eu disse
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco

Desde que me entendo por gente
Difíceis momentos tristes
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste
Eu disse
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste

Desde que me entendo por gente
Eu saquei que Jesus Cristo
Morreu na cruz por nós, inocentes
Pra provar que a vida é (*)

Desde que me entendo por gente
Carioca, carica, carnaval
Sol, futebol, mulher diferente
Mãe humanamente igual

Desde que me entendo por gente
Donga, Ataulpho, Cartola
Ari Barroso, Assis Valente
Mano Décio, Paulinho da Viola

([*] não foi possível decifrar o termo/palavra cantado por Elza, assim como não foram encontrados registros da letra original, nem na internet nem na própria Caixa Preta, em cujo encarte relativo ao CD que possui a música de Itamar não aparece o texto da canção na íntegra, tendo sido excluídas suas três últimas estrofes).

Paulinho é também cultuado pelas gerações que vieram na sequência do seu trabalho, assim como dos que vieram antes dele.
Não poderia ser de outro jeito.

Ele é um desses mediadores musicais sem brechas, que nos põe numa perspectiva muito mais longeva do que nosso tempo linear permitiria. 
Que ecoa tanto em sua própria voz o turbilhão informativo de quem fez - e dele próprio como fazedor - quanto nas vozes dos que o ouvem e o dão ensejo, projetando por todo lado o reconhecimento de sua generosidade artística!

Aliás, não impressiona!
Emociona!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Capinam e a Bahia em 1980.

(por Magno Córdova)

("...este é o momento em que a região, antes naturalmente sedutora, se transforma numa profissional da sedução". Antônio Risério, "Uma teoria da cultura baiana"; in: O poético e o político).

No ano de 1981, o poeta e escritor José Carlos Capinam reclamava, em depoimento ao jornalista Valdomiro Santana, da descaracterização sofrida pela cultura popular na Bahia incentivada pela indústria do turismo. Segundo ele, era comum na cidade de Salvador e outras cidades turísticas daquele estado pegarem-se pessoas que sabiam cozinhar “caseiramente” deliciosos pratos típicos da região e treiná-las para fazer churrasco ou pizza em restaurantes que atendiam a classe média. 

Sobre a perda da vocação natural do espaço urbano como centro de convergência de idéias e convivência da criação, Capinam apontava a tendência da Bahia em se identificar mais com o Rio de Janeiro e São Paulo do que com as vizinhas regiões nordestinas. Era comum a cidade de Salvador ser considerada pelo próprio povo nativo como uma colônia de férias daqueles dois estados do sudeste, não havendo qualquer contato com Recife, João Pessoa ou Fortaleza.

Se, por um lado, a reconquista dos valores tradicionais da culinária baiana se intensificou nos últimos vinte anos anteriores à fala de Capinam, em outros aspectos culturais o turismo no estado desenvolveu um aparato estrutural que lhe permitiu  certa independência e autonomia perante as outras regiões do país. A música produzida na Bahia, em especial aquela vinculada ao carnaval local, conquistou espaço na mídia nacional e internacional.

(com o término do grupo Novos Baianos, Moraes Moreira assumiu papel preponderante no reaquecimento do carnaval de rua da Bahia, mais ou menos no contexto em que se deu o depoimento de Capinam aqui mencionado. Seu trabalho musical pautou-se na reafirmação e retomada do prestígio dos trios elétricos, em particular o Trio Elétrico Dodô e Osmar).

Pessoal do aló 
(Moraes Moreira e Antônio Risério)

Alô, Alô pessoal do alô
Vai ter auê, badauê, ebó
Chilique do cacique
No ponto chique
Atrás do cheirinho da loló
Mas qual é o pó?
Quem é do roçado
Ralando coco se dá melhor
Sou pena branca
Da zona franca
De Maceió
Vendendo peixe
Passando piche
Sou azeviche
Apache do tororó

Essa repercussão, longe de melhorar as condições de vida das camadas populares em geral no estado, reforçou o esvaziamento da cultura popular ali produzida ao dar destaque à produção em massa em detrimento às manifestações folclóricas. Para Capinam, o início desse processo de desvalorização da cultura popular se deveu a que nem os intelectuais, representados pela universidade, nem o Estado ou a iniciativa privada apresentaram projetos que contemplassem tais manifestações. O grande equívoco desses setores foi terem considerado o folclore como sinônimo de decadência cultural.

(podemos dizer que obras como a do compositor Roque Ferreira se situam entre as que recuperam, mantêm e ao mesmo tempo renovam elementos do que Capinam chama de folclore, como o samba de roda do Recôncavo. Roque surgiu para o público em fins dos anos 70. Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=cUdUcRme-oY)

Aguadeira / Saubara
(ambas em parceria Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro)

Lá vem a aguadeira
Quer água de cheiro só
Água de cheiro só
Lá vem aguadeira

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

É de fibra de palmeira
A rudilha apoiada em seu anzol 
Dentro da pilha dessa aguadeira
Tem água de cheiro
Que vem da ribeira
Água do itororó

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

Aguadeira do meu lado
Tá sambando sem receio
Se não fosse esse seu namorado
E meu amor ali no meio

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

Aguadeira quando samba
Meu amor não quer que eu vá olhar
É que nem lavar a roupa sem molhar

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

Quando ela arria o pote
Sem perder o bamboleio
É aí que seu decote revela
O botão do seio

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

Quando ela samba
Roda a renda de cambraia
E aparece a perna grossa
Por baixo da roda da saia

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

Vá no Bonfim
Que a Aguadeira tá lá
E a água além de perfumar
Carrega quebranto pesado e mágoa
E a água molha da aguadeira o camisu
Seu corpo quase fica nu
Com a água

Ave maria, meu Deus
Ave maria, meu Deus

Cira cirandeira
Pra ciranda de Sara
Êe lá em Saubára (3x)

Cira admira Sara
Sara também admira
Ciranda de Cira
Que a nada se compara
Quem é de dança delira
Se juntar Cira com Sara
E a roda a noite gira
E a ciranda lá não pára

Êe lá em Saubára (3x)

Quando é com Sara
Que Cira na cirandeira
Quando é com Cira
Que Sara saracoteia
Na volta e meia de Cira saracoteia
Na meia volta é que Sara dá volta e meia
Parece mentira mas você repara
Ninguém se retira
Ninguém se separa
Na hora que Cira ciranda com Sara

Êe lá em Saubára (3x)

Uma dica de leitura introdutória para se ter uma visão geral da produção literária e cultural baiana em parte significativa do século XX é o livro Literatura baiana 1920-1980, de Valdomiro Santana, onde se encontram depoimentos de vários escritores. O livro foi publicado pela Philobiblion em convênio com o Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória.

Sobre  o carnaval da Bahia, em particular sobre os Trios Elétricos, a leitura sugerida é O país do carnaval elétrico, de Fred de Góes, publicado pela Corrupio. 

sábado, 16 de janeiro de 2016

O dia em que Nat King Cole atravessou o Jequitinhonha (13 de janeiro de 1965).

(por Magno Córdova)


Enquanto a mãe baiana dava à luz seu décimo filho, vindo das mãos do médico cearense (!),  naquele rincão onde ambos haviam se radicado com suas famílias, em "parto artesanal" - como tudo do lugar; enquanto o parto era realizado no segundo dos dois quartos anexos à sala de estar do 72 da rua dos Caetés; ali, na própria sala de estar, rolava na radiola um disco long-play intitulado A mis amigos.

Pela janela afora do quarto, a Cangalha que, se não é a mais linda, passou a ser "a Serra".


(Através da janela, de dentro do quarto, a Serra da Cangalha. 
Foto extraída de https://madeinrubim.wordpress.com/hidrografia/paraiso/)

O berro primal soou, então, como um duo ou backing-vocals entre menino e artista do disco.

Era Nat King Cole que, entretanto, já era familiar aos ouvidos da criatura que nascia, desde o útero. Sua mãe não era apenas uma fã monossilábica do artista: era fa-ná-ti-ca, com todas as letras - como que antecipando aquilo que posteriormente veio a se chamar tiete -, pelo artista norte-americano. Quase que uma "macaca de auditório", se houvesse algum auditório por perto. O que fazia de Nat King Cole, em certa medida, um soteropolitano (ou seria um "Caboclo do rio", do rio Jequitinhonha?).

Mas não havia auditórios que comportassem, no Jequitinhonha, figuras daquele porte: havia vitrolas, onde tocavam discos vindos de fora da província; havia as capas dos discos, que eram telas indispensáveis na construção imaginária da vida e da personalidade do artista;  e havia, antes de tudo, o rádio, objeto de fascínio e invasão permissiva.

(Capa e contracapa do LP A mis amigos, de Nat King Cole, gravado em 1959)

No extremo disso tudo, o risco do exagero de pensar num equívoco da natureza, da criação, no interior daquele processo de gestação de um novo ser: ele deveria ter nascido neguinho ou, como sua própria mãe dizia, caboverde. Um negro caboverde, feito o futuro amigo Zu (não o Cabeção, filho de Jóvi e Preto, da infância; mas o da capital, do menino já adulto). Pois foi também quase adulto que se esclareceu ao menino o enigma em torno daquele nome que, antes atribuído às pessoas de pele preta nascidas na faixa de mapa que ia do México à Colômbia e Venezuela, abrangendo todo Caribe, encontrou sua origem real, indício da profusão de cores, nomes e falares perpetrados pela mais cruel diáspora: o arquipélago do continente africano.

"Ay cosita linda", sim! Vasta cabeleira negra mostrando ao mundo, após o berro inaugural, seu sorriso de gengivas, em resposta ao prazer luminoso da canção. Aliás, mais que outra coisa, ao veludo vocal que norteava todo o disco. Era a retribuição às boas-vindas via ouvido, primeiro sentido formalmente acionado em torno de uma suposta casualidade, da circunstância que diz respeito à experiência pessoal, marca individual, sem que os presentes e o pequeno vivente sequer soubessem ou pensassem no que se instalara do ato até o parto. Um processo, como muitos, só que cerzido no som e pela música que o som organiza. Exercício que se reafirmaria ao longo da primeira infância naquela cidade de interior; que, posteriormente,  com outra diáspora, agora local, se consolidaria na cidade grande, pra onde sua família se viu obrigada a seguir; e até adiante, até não se sabe onde. 

Eram e foram as condições de iniciação da escuta musical e seus desdobramentos no aqui e agora. Ou, ao menos, uma delas, involuntariamente ativada desde o início, perceptível e encrustada: a escuta. Era a cama/útero sem a amarra do cordão materno, mas forrada por quem era sua portadora.

Assim, às vezes, me busco.
Assim me encontro!



Capullito de alelí
(Rafael Hernández)


Lindo capullo de aleli 
Si tú supieras mi dolor 
Correspondieras a mi amor 
Y calmaras mi sufrir 

Porque tú sabes que sin tí 
La vida es nada para mí 
Tú bien lo sabes Capullito de aleli 

No hay en el mundo para mí 
Otro capullo de alelí 
Que yo le brinde mi pasión 
Y que le dé mi corazón 
tú solo eres la mujer 
A quien he dado mi querer 
Y te brindé lindo alelí 
Fidelidad hasta morir 

Por eso yo te canto a tí 
Lindo capullo de alelí 
Dame tu aroma seductor 
Y un poquito de tu amor
Porque tú sabes que sin tí 
La vida es nada para mí 
Tú bien lo sabes Capullito de alelí

sábado, 9 de janeiro de 2016

De Eltos, Angenores e o MIS da Lapa.

(por Magno Córdova)


(Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha e Donga)

Deve ter sido em 1989 ou 1990.

Eu mal conhecia o Rio. Havia tirado uns dias de férias e parti pra maravilhosa sozinho. Numa tarde após o almoço, fui visitar o MIS e me encaminhei pra praça XV, onde fica sua sede. Logo na entrada do edifício, busquei informações e ocorreu o seguinte diálogo com a informante:
                - “Olha, isso que você está procurando fica lá no MIS da Lapa. Procure o ‘seu Elto’ que ele irá te ajudar”, orientou-me a moça.
               - E qual será a melhor hora pra falar com o “seu Elto”?, perguntei. 
                - “Ele está lá agora. Quer que eu ligue e informe que você irá procurá-lo daqui a pouco?”.
                - Faça isso, por favor. Muito obrigado.

Rumei pra Lapa a pé, caminhante apaixonado por aquele centro fascinante.

Anunciei-me na recepção do museu na Lapa e foi-me indicada uma porta até onde eu deveria me dirigir ao encontro do senhor Elto, que me aguardava. Quando abro a porta indicada, a surpresa: “Seu Elto” era Elton Medeiros, ali, disposto a me ciceronear.



Uma tarde inteira no Museu da Imagem e do Som da Lapa sendo “guiado” por Elton Medeiros não é uma coisa comum para um “turista” mineiro meio acaipirado, pego no susto por uma casualidade.

Elton é criatura iluminada também como funcionário público, tanto quanto como melodista (dos melhores) e letrista/poeta! Dedicou-se integralmente aos meus anseios de conhecimento, sem contar a riqueza das histórias nascidas das perguntas mais banais que eu, um pouco tímido, tiete maravilhado, o lançava. Ficou feliz e empolgado ao saber que eu sou nascido no Vale do Jequitinhonha. Tinha conhecimento de causa do lugar, admirador da arte em barro e tecelã realizada por gente minha conterrânea. "Uma gota de afinidade recíproca", lembro-me que pensei comigo, como forma até mesmo de disciplinar o fascínio pelo encontro. Ele quis e conseguiu me deixar à vontade e feliz com essa informação sobre o Jequitinhonha.

Quando Elton me sugeriu que eu conhecesse e levou-me aos Arquivos da Rádio Nacional, incorporados ao acervo do museu, encontrava-se ali o Chiquinho Faria, irmão do Paulinho da Viola, um dos grandes pesquisadores e especialistas do patrimônio do MIS, a quem fui apresentado.

Tarde boa na cidade do Rio? Uma benção!

Abaixo, fazendo jus ao inusitado do meu encontro com Elton no MIS da Lapa, uma música dele feita em parceria com Tom Zé, portanto, dentro do que comumente é chamado de fase pós-tropicalista do baiano de Irará, mas fora do nicho mais provável e imediatamente referenciado da produção musical do carioca da Glória, do Tupi de Brás de Pina, da Aprendizes de Lucas,  Elton Medeiros.

"Tô" foi gravada no disco Estudando o samba, de Tom Zé, lançado em 1976, título que mais do que justifica a presença de Elton em seu contexto. 

 

Música: Tô

Composição: Elton Medeiros e Tom Zé


Tô bem de baixo pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar

Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
Tô estudando pra saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar

Eu tô te explicando
Pra te confundir
Eu tô te confundindo
Pra te esclarecer
Tô iluminado
Pra poder cegar
Tô ficando cego
Pra poder guiar

Suavemente pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência

Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu tô me despedindo pra poder voltar

Eu tô te explicando
Pra te confundir
Eu tô te confundindo
Pra te esclarecer
Tô iluminado
Pra poder cegar
Tô ficando cego
Pra poder guiar

No fim daquela jornada, voltando pra casa de amigos em Botafogo, onde me hospedara, fiquei pensando na espontânea e irretocável forma com que todos do MIS pronunciavam o nome de Elto e me lembrei de haver lido que, certa vez, Cartola teria dito que há um “n” a mais e outro a menos em seu nome e no nome de Elton: é que ele, Cartola, tem como nome de batismo “Angenor” e Elton é “Elto”.

Não faz diferença!
Ou faz?

Abaixo, o lirismo de Paulo César Pinheiro em pé de igualdade sob melodia de Elton, aqui mostrando sua faceta como intérprete cantor.


Música: A ponte
Composição: Elton Medeiros e Paulo César Pinheiro

Chora
Põe o coração na mesa
Chora
Tua secular tristeza
Tira o teu coração da lama
E chora
A dor santa e a dor profana
Que Deus protege a quem chora
Por toda tristeza humana

O homem é sempre só
O fim é sempre pó
Ninguém foge do nó
Que um dia a vida faz
Por isso chora em paz
Que a lágrima que cai
É a ponte entre mais nada
E outra vida mais

(E Deus protege a quem chora)


(A imagem anexada logo na sequência de abertura do texto é uma cópia de uma original feita por mim na sala do Elton, naquela ocasião, com minha possante (!) Kodak (?): guarda visualmente a memória de um belo dia em companhia de um grande cara!).  

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Escuta 1ª para 2016

(por Magno Córdova)

Inicialmente, pensei em selecionar dez músicas (canções ou instrumentais) pra audição. No entanto, não encontrei justificativa para a definição da quantidade, do limite satisfatório. A solução para o problema da não aleatoriedade eu a encontrei alterando e aumentando a lista para 12 canções, inspirado no número de meses do ano.

1



Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá
Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá
Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Se der ponto pro Salvador
Eu vou pra Igreja rezar
Acendo uma vela pra Deus
E peço pra me perdoar

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá
Se der ponto pro Orixá
Eu vou pro Terreiro de saia
Licença ao dono casa
Pro meu Santo baixar

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Dez pai-nosso vinte ave-maria
Essa fé não vai me faltar
Um ponto para Ogum
E três toques para Iemanjá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá
Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Se der ponto pro Orixá
Eu vou pra Igreja rezar
Acendo uma vela pra Deus
E peço pra me perdoar

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Se der ponto pro Salvador
Eu vou pro Terreiro de saia
Licença ao dono da casa
Pro meu Santo baixar

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Dez pai-nosso vinte ave-maria
Essa fé não vai me faltar
Um ponto para Ogum
E três toques pra Iemanjá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Se dá ponto pro Salvador
Se dá ponto pro Orixá

Ai o meu novelo de lã
Já não sabe que ponto dá

Sobre as motivações, a única certeza é que a escolha do repertório é pessoal, sem pretender ser exclusivamente subjetiva, já que a escuta de música que cotidianamente pratico se situa para além de uma audição simplesmente casual ou dentro de parâmetros que são determinados apenas por mim.

2


Todo dia 
Todo santo dia
Acordo cedo
o sol na minha cara

Tô na beira terça-feira
Rezo o terço
E sonho para não dormir
Eu já bati na tua porta, neném
Já pedi foi tanta coisa a ninguém

Cresço pra bem servir-te, ó pátria amada
Tenho a nobreza do congar
Eu não queria me calar, ô mãe
Minha mãe

Entretanto, independentemente da maneira como uma música chegue aos meus ouvidos, sua inclusão na presente lista denuncia, indubitavelmente, estímulo e interesse surgidos através da experiência de sua audição - e, supostamente, da experiência de pessoas ou grupos com os quais partilho essas práticas de escuta.

3

(arraste o marcador de tempo do vídeo acima até 45:34 para acompanhar a música Sóis [marcha], cuja letra encontra-se abaixo)

No infinito
Do vão do espaço
Se espaça o tempo,
Não há cansaço !

No infindo imenso
De um tempo aço
Se espessa o vão
Que liberta o traço,
Forte num abraço !

Há muito mais
Do que esperamos ser,
Tem mais além
De onde podemos ver ...
Mais muito há
Do que pensamos ter,
Além do mais
Do que queremos crer !

Há bem mais sóis
Crestando entre as estrelas !

Vamos andando
Por aí ...

Brilhar
É o espaço siderar !

Há bem mais sóis ...

Há bem mais sóis,
Crestando entre as estrelas :
Confusos, tentamos vê-las !
Confusos, tentamos tê-las !
Confusos, tentamos ser
As estrelas !!!

O mais importante aqui é que a seleção de repertório é resultado da utilização livre de critérios variados.

4



Teleco-teco teco-teco teco-teco 
Ele chegou de madrugada batendo tamborim 
Teleco-teco teco teleco-teco 
Cantando “Praça Onze”, 
dizendo “foi pra mim” 
Teleco-teco teco-teco teco-teco 
Eu estava zangada e muito chorei 
Passei a noite inteira acordada 
E a minha bronquite assim comecei 

“Você não se dá o respeito 
Assim desse jeito, isso acaba mal 
Voce é um homem casado 
Não tem o direito de fazer carnaval” 
Ele abaixou a cabeça, deu uma desculpa e eu protestei 
Ele arranjou um jeitinho, me fez um carinho e eu perdoei

Como norteamento, digo que alguns artistas ou músicas aqui listados surgem como incógnitas. Incógnitas que não estão necessariamente associadas ao dado de ineditismo ou novidade, ao fato de serem supostamente tênues os elementos que os legitimariam como representativos, significativos, relevantes ou importantes, em relação a outros não listados.

5



Minha folia
É a rainha
Que faz coroação

E seu cortejo
Traduz desejo
Alegra o coração
que vai

Devagarinho
Deixando o ninho
Buscando a imensidão

Passeio breve
Seu passo é leve
Compasso de canção
Vem

Pedir passagem
Seguir viagem
Até um clarear

De cor tão bela
Qual aquarela
Eu quero ofertar
Pra ti

Todos os brilhos
Todos os filhos
Nascidos do cantar

Eu trago a prenda
E a oferenda
Te tiro pra dançar

Dança de rei
Coisa de Deus
Deixa eu ser seu par

Rosa de luz
Rindo pro céu
Quero cortejar
E louvar

Agradecido
Brindo ao destino
Com versos que colhi

Pelo caminho
Desde menino
Poetas que ouvi
Me dão

Tecido nobre
De ouro e cobre
Com rendas que escolhi

Eu faço o manto
Junto ao meu canto
E ofereço a ti

Dança de rei
Coisa de Deus
Deixa eu ser seu par


Rosa de luz
Rindo pro céu
Quero cortejar
E louvar


Na despedida
A estrada é linda
Pra sempre um caminhar

E sopra o vento
Do encantamento
Certeza de voltar
É bom

Que seja logo
Aos céus eu rogo
Que eu volte para ver

Tanta beleza
Luz da nobreza
Pra sempre eu quero ter
Você e eu

Incógnita aqui pode indicar tanto a potencialidade inesgotável de uma canção, sugerindo sua perenidade através de surpreendentes recorrências no tempo, quanto o impacto inexplicável de uma música desconhecida que se acabara de ouvir.

6


Quando vi Dó
De cachoeira
Debaixo do balaio
Lá na gameleira
Mercando pimenta
De cheirar e de arder
Dei um psiu pra ela
Ela me respondeu:
- Inhô!
Convidei pra samba-chula
Lá na pitangueira
Com Zeca Afonso
E Zeca de Lelinha
Lá o trem come
Por cima da linha
Ela sorriu
Me passou um rabo-de-olho
E depois saiu
NO corpo dela tinha um molho
Ai, meu Deus, que molho!
Chamei ela pra morar
Na minha casa amarela
Lá da janela
Dá pra ver o mar
Tem uma rede na varanda
Que é pra gente namorar
Namorar, namorar
Namorar, namorar
Namorar, namorar
Na rede balançar

Ser ou não recente no tempo não condiciona qualquer das músicas aqui listadas como mais contemporâneas do que outras - nascidas em momento diverso -, mais próximas que estariam ou estão do tempo presente em que aqui escrevo. Isso não ocorre.

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Eu que não tenho um violão
Faço samba na mão
Juro por Deus que não minto
Quero na minha mensagem prestar homenagem
E dizer tudo que sinto
Salve o Paulinho da Viola
Salve a turma de sua escola
Salve o samba em tempo de inspiração

O samba bem merecia
Ter ministério algum dia
Então seria ministro Paulo César Batista Faria 

Uma canção como "Telecoteco", por exemplo, na versão de Isaurinha Garcia aqui listada, aparece justamente por reorganizar, reafirmar e reaproximar elementos postos por um fazer musical que parece sublimar determinações temporais e, ao mesmo tempo, é sugestivo de uma atualidade - onde quer que essa atualidade se situe: esteja no plano objetivo identificado fisicamente pelo ouvido e/ou pelo reconhecimento técnico de um profissional; esteja ela situada em lugares mais profundos da memória - coletiva ou individual - onde toquem instâncias emocionais fugidias ao controle da razão, de qualquer um de nós ou de todos.
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Recolhe ainda verde pelos matagais
Mergulha e rala a pele pelos areais
Candeia segue ausente na cadência ao mar
enquanto a rachadura não se faz fechar

No trilho o andarilho tenta descobrir
Se o leito da partida não vale o perdão
Se os pés já não caminham sem ouvir a voz
que narra todo o enredo dessa solidão

Sentido vê que há mesmo sem direção
que o norte tantas vezes se multiplicou
Na contramão indica que o destino vai
levar pelo caminho que ele desviou

Enquanto o cais vagueia por aí
Já que a ressaca nem notícia deu
Revelam fatos sem sequência
do que era muito e é só seu

Isso não significa negar a historicidade das canções e seus autores mas, antes, superar o reconhecimento de uma história nos moldes convencionais, equivocadamente tradicionais, situando-a exclusivamente no passado. A meu ver, uma visão limitadora de história que carrega consigo a neutralização do presente como tempo histórico consequentemente anula os sujeitos inseridos nesse presente.

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Moçada, nosso caso no Brasil é samba
É um pandeiro, uma mulata e um crioulo com passo de bamba
Um violão, uma cuíca, uma mulata cheia de miçanga
Nada de rock rock, de rock rock
Nós queremos é samba

Um samba ritmado bem tocado cheio de remelexo
Uma mulata bem cestosa requebrando faz cair o queixo
Sabe lá o que é isso?
Onde tem um bamba,
Nada de rock rock, de rock rock
Nós queremos é samba

Daí que a música feita (e ouvida) neste instante, dentro da perspectiva que aqui se quer contemplar, já possui sua história. 
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O meu amor sai de trem por aí
e vai vagando devagar para ver quem chegou
O meu amor corre devagar, anda no seu tempo
que passa de vez em vento
Como uma história que inventa o seu fim
quero inventar um você para mim
Vai ser melhor quando te conhecer

Olho no olho
e flor no jardim
Flor, amor
Vento devagar
vem, vai, vem mais

Não seria isso a atemporalidade que a manifestação musical e tudo que ela implica - marcada por noções de tempo - sugere e supõe?
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Dou de chorar
Chorar de rir
Rir de fazer
Água rolar
Só por prazer
Água musa da filosofia
Toda gota principia
Um sabor novo de sal
Noite do iguana excita o rio
Água unidade do cio
Tudo é um água total
Horizonte azul que a vista alcança
Vou na onda que balança
Nada é um nadar igual
Mãe de Quelé
Mãe de Pixinguinha
Rum Rumpi Lê
Dou uma palmadinha
No bum-bum é
No bum-bum de uma
Que abre, que abre o bué
Mãe de uma menina
Mãe de uma Nazaré
Viva o movimento
Mãe da maré
Benza o sofrimento
Fonte da sé
Água na banheira
Ajuda, ajuda-me até
Traga-me um desejo novo
E vê se me põe de pé!


Boa escuta!
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Lá onde o sol descansa
Lá onde o sol descansa
Amarra sua luz no vento que balança
No veio do horizonte o meio que arredonda
Um caminho de paz

Lá onde a dor não vinga
Nem mesmo a solidão extensa da restinga
Até aonde a vista alcança é alegria 
Um mundo de paz

Lá onde os pés fincaram alma
Lá onde os deuses quiseram morar
Lá o desejo lá nossa casa lá
Lá onde não se perde

A calma e o silêncio nada se parece
Nem ouro , nem cobiça, nem religião 
Um templo de paz
Lá onde o fim termina
Descontinua o tempo o tempo que ainda
Herança que deixamos do nosso lugar
Um canto de paz