(por Magno Córdova)
Uma mistura básica no Brasil: música e futebol.
Acrescente a isso um processo empírico de luta, significativo em nossa história.
Tá desenhada a rede de conexões a encontrar sentido e significado.
É que a gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho e aprende que a alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado.
Reitero minha mestiçagem! Reitero a música popular feita no Brasil como espinha dorsal disso tudo!
E eu não sou Pelé, nem nada. Se muito for, sou um Tostão.
Mais uma vez, a presença de Climério Ferreira.
E, dessa vez, num universo de fazeres outros. Mas ainda pela poesia, claro!
Vou buscar um livro de Climério na estante. Pego um deles, o "Artesanato existencial". É nele que se encontra um poema que me persegue por esses dias e que há tempos não lia. E esse poema tem me perseguido da seguinte forma:
- desde que tomei conhecimento do mesmo, soou como muito simpáticas a citação e a homenagem ao jogador que nele aparece terem sido feitas por Climério, piauiense radicado no Distrito Federal e perambulante por outros recantos;
- a retomada da leitura dos poemas de Climério coincide com a releitura de poemas de outros poetas do período brasiliense/carioca. Uns poetas, outros letristas/poetas, outros somente letristas, complexa diferenciação. Sérgio Natureza é um deles, com quem tive a oportunidade de uma rápida aproximação quando justo saí do DF para residir na cidade de São Sebastião. No Rio, Sérgio atua e habita;
- de Climério a Sérgio é o salto do Nordeste ao sul maravilha - como se dizia (e ainda se diz? nesses tempos sem tempo e sem espaço?) e, de certa forma, à Minas do jogador do poema. Pois que Sérgio é parceiro de Tunai, irmão de João, que compõe e compôs com Aldir. Da faixa do Parnaíba/Canoa Quebrada à Ilha das Cobras é o mesmo que do Dragão do Mar ao Almirante Negro, ou seja, de Francisco José do Nascimento a João Cândido, representando a parcela exterminada da nossa "Esquadra Branca"; é um salto com passagens de um a outro século, de concepções de Estado, de fisionomia política, de abertura pro mar, de trabalho não escravo, de dignidade de canoeiros e marinheiros, de liberdade no mar.
- Mas, e o jogador? Ele divide a bola com o universo da Chibata, no segundo e no terceiro lps de João, ouvidos obrigatoriamente no cotidiano de minha infância na cidade de Belo Horizonte, mesma cidade em que "O craque" atuava e habitava (ou ainda habita, não sei). Os títulos dos discos soavam quase como um grito de gol no Mineirão. Só que do time adversário - aquele que possuía os melhores jogadores de causar uma inveja, inveja silenciosa no menino cruzeirense:
Cerezo... - que, mais ou menos ali, foi "tocado" por Pepeu no primeiro instrumental pós Novos Baianos, o fantástico e seminal Geração de Som, adquirido às pressas na COTEC da engenharia, com o Mallagutti, assim que lançado. Ouçamos Toninho Cerezo nas mãos de Pepeu:
(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=v18NcZVaVs8)
- ...também Paulo Izidoro, Marcelo (recentemente treinador do Cruzeiro), Ângelo (que me fez atleticano contra o São Paulo de Chicão e Neca) e...
...Reinaldo - cantado pelo mesmo Tunai, parceiro de Sérgio. Só que aqui junto a Fernando, o Brant:
(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=aKed_vI_hWw)
Rei
Composição: Tunai e Fernando Brant
Quando a bola vai rolar
Vale verde e Mineirão
Tem um nove no coração
Quando a bola vai rolar
Beira Rio, Maracanã
Já conhecem o seu poder...
Um poder que faz cantar
Um poder que faz dançar
Um poder que faz o povo ir (1)
rir (2)
O poder da multidão
Inventando a paixão
No momento de um gol
Rei, nosso rei
O povo elege o seu poder
Rei, nosso rei
O povo prefere o seu poder.
- O nome dos discos de João Bosco? Caça a raposa e Galos de Briga, cujas canções-título (e todo o repertório) não podiam ser outra coisa: João era atleticano, pensávamos brincando. Raposa e galo aí estão muito bem definidos na cabeça de João. Era o que nos ocorria.
Pois, falar desses discos sem ouvir as canções que lhes dão título, justo aqueles títulos que soavam imaginariamente com outro sentido, é uma blasfêmia. A tal Caça à raposa (canção das mais belas, marcantes e inesgotáveis - na falta de outro adjetivo que satisfaça)...
(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Z_gu341Jo30)
Caça à raposa
Composição: João Bosco e Aldir Blanc
O olhar dos cães, a mão nas rédeas
E o verde da floresta
Dentes brancos, cães
A trompa ao longe, o riso
Os cães, a mão na testa:
O olhar procura, antecipa
A dor no coração vermelho
Senhoritas, seus anéis, corcéis
E a dor no coração vermelho
O rebenque estala, um leque aponta: foi por lá!...
Um olhar de cão, as mãos são pernas
E o verde da floresta
- Oh, manhã entre manhãs! -
A trompa em cima, os cães
Nenhuma fresta
O olhar se fecha, uma lembrança
Afaga o coração vermelho:
Uma cabeleira sobre o feno
Afoga o coração vermelho
Montarias freiam, dentes brancos: terminou...
Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo
e o fogo
...e o (a) tal Galos de Briga
(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=FfOy4PX9Qj0)
Cristas de incêndio crispadas,
cristas de fogo de espadas,
cristas de luz suicida,
lúcidas de sangue futuro.
Cristas crismadas em rubro;
não rubro rosa assustada,
de rosa estufa, canteiro,
mas rubro vinho maduro,
rubro capa, bandarilha,
rosa atirada ao toureiro.
Não o rubrancor da vergonha,
mas os rubros de ataduras,
o rubro das brigas duras
dos galos de fogo puro,
rubro gengivas de ódio
antes das manchas do muro.
- Mas era "O craque', aquele que colocava o Cruzeiro no mesmo patamar (ou, ao menos, ele mesmo se equiparava com os tantos que o time adversário possuía), que vinha assim por Climério (eis o poema que me perseguia até aqui):
Por onde andará Joãozinho
Que dava o drible da vaca
Até em bumba-meu-boi?
Onde estiver Joãozinho
Dará uma pisa, uma taca
No tempo que já se foi
Pois bem, era no Caça a raposa que se ouvia, todo dia, na minha casa, "O mestre sala dos mares".
- E, no meio do processo, mais uma conexão, no Rio, pra se juntar à essa culinária de mistérios e significados: conhecer de perto, conviver amistoso, com o historiador Marco Morel, autor de um livro sobre tema tão possível de amarrar nesse nosso delírio cotidiano, como um ingrediente desse bolo que mistura bola e tamborim, canhões e almas: o tema mais que impregnado da corrupção no Brasil. Taí, mostro a cara do livro do Marco:
- três irmãs e um irmão (tenho orgulho de ter três irmãs e um irmão - mais velhos que eu - com formação política de esquerda, com os pés fincados na luta dos que menos tem, que me influenciaram) adquiriam livros, antes de eu fazê-lo. Um desses livros piscava pra mim da estante, enquanto ouvia o "Mestre salas...", ora com João, ora com Elis. Era o A Revolta da Chibata, do Edmar Morel, avô de Marco. Li o Edmar apoiado pela escuta de João e do Aldir. Adolescente.
Aqui, a capa da edição do livro do Edmar que li:
E aqui, texto sobre Edmar e seu livro, em artigo escrito pelo seu neto Marco:
http://www.vermelho.org.br/noticia/142017-11
Dando sequência à prosa, quando eu trabalhava em uma rádio pública de Belo Horizonte, já adulto e antes de sair em residência para fora do estado de Minas, escrevi sobre o livro. O texto era mais ou menos assim (e este era o fim último desta postagem: tornar público este texto):
A cidade do Rio de Janeiro se inquietou com os estampidos de tiros de canhão vindos do porto naquela noite de 22 de novembro de 1910. Vidraças das edificações do centro e do bairro de Copacabana se estilhaçavam. O então presidente da república, Marechal Hermes da Fonseca, estava sendo recepcionado no Clube da Tijuca quando recebeu a notícia de que a Marinha se revoltara. A princípio, pensou ser um levante chefiado pelo Almirante Alexandrino de Alencar, que deixara o Ministério da Marinha havia oito dias. Ao chegar ao Palácio do Catete, sede do Governo Federal, a estação de rádio do morro da Babilônia já havia captado uma mensagem ameaçadora dos rebeldes: se não fossem eliminados os maus tratos dos oficiais sobre seus comandados nos porões da Marinha, a cidade e também os navios que não se rebelassem seriam bombardeados. Pediam o fim da chibata, o fim dos castigos corporais. Assumiam a mensagem os tripulantes das guarnições ”Minas Gerais”, “São Paulo e “Bahia”.
A “Esquadra Branca” brasileira era considerada, em 1910, a terceira potência naval do mundo. O “Minas Gerais” e o “São Paulo” eram dois encouraçados de grande porte e o “Bahia”, um cruzador; os três representando as guarnições mais modernas e potentes da esquadra.
Quem chefiou a insurreição foi o marinheiro João Cândido, o primeiro no mundo a comandar uma esquadra. Do seu lado, um grupo de homens decididos, injustiçados, com unidade, chefia e ideal. Do outro lado, um governo indeciso, pagando por injustiças praticadas a várias gerações de marujos. Após quatro dias de ameaças e negociações, Rui Barbosa, com todo o prestígio da sua Campanha Civilista, propõe anistia e o fim do regime de chibatas instaurado no governo Provisório do Marechal Teodoro da Fonseca, em 1890.
Iniciava-se, com a anistia, o verdadeiro horror vivido pelos rebeldes. Após se entregarem, parte deles é encarcerada em uma masmorra na Ilha das Cobras, onde morrem de inanição ou asfixia; outro tanto, enviada para os confins da Amazônia a bordo do navio “Satélite”, onde muitos foram vendidos como escravos ou simplesmente fuzilados. João Cândido, milagrosamente sobreviveu, vindo a falecer apenas em 1969.
(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=KanAmmTUVnE)
O mestre sala dos mares
Composição: João Bosco e Aldir Blanc
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como navegante negro
Tinha dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto, pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
Dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
E a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
A indicação para leitura sobre o assunto, claro, é o livro “A Revolta da chibata”, de Edmar Morel. A edição que conheço é da Edições Graal, de 1979.
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