(por Magno Córdova)
Aqui, fragmentos (mais ou menos esparsos?!) de texto sobre São Saruê, de minha autoria.
Não que seja minha intenção dificultar o acesso à cidade/país tão desejado/sonhado.
Me comprometo a dar o endereço, assim que encontrar a rota completa e certa.
Ou seria melhor fazer como Manuel Camilo que, ao fim de seu poema, propõe contar o segredo de onde fica São Saruê, mas com a condição de só confidenciar àquele que lhe comprar o folhetinho (o cordel)?
O arcabouço referência:
1) Folheto de cordel: Viagem a São Saruê, de Manuel Camilo dos Santos
(Imagem do folheto extraída de: http://portaldocangaco.blogspot.com.br/2010/10/literatura-sobre-conflitos-entre_3751.html)
2) Filme: O país de São Saruê, de Vladimir Carvalho
3) Canção: São Saruê, de Marcus Vinícius de Andrade, trilha do filme
(ao longo do texto, vídeo com áudio da canção)
4) Poema: São Saruê, um país, de Climério Ferreira
(capa do livro Alguns pensames [1979], de Climério, contendo seu poema sobre São Saruê)
5) Canção: Oferenda, música de Clodo e Clésio, sob fragmento do poema São saruê, um país, de Climério
(ao final do texto, vídeo com áudio da canção)
Manuel Camilo dos Santos nasceu em Guarabira (PB), em 1906. O seu folheto Viagem a São Saruê foi publicado pela primeira vez, provavelmente, na primeira metade da década de 1950, segundo José Ramos Tinhorão. Nele, o poeta descreve sua viagem ao país da abundância.
No que se refere à sexualidade, o conteúdo desse cordel é bem discreto. Nele, o nu se ausenta. O poeta chega a sugerir um recato e um controle da sedução, onde as pessoas são quase assexuadas, amistosas e... “vestidas”:
“Lá não se vê mulher feia
e toda moça é formosa
bem educada e decente
bem trajada e amistosa
é qual um jardim de fadas
repleto de cravo e rosa”
No máximo, poderíamos deduzir que a sexualidade em São Saruê se inscreve no ideal do amor romântico, do encantamento da natureza. Cabe aqui uma observação: a natureza em São Saruê é abundante, mas perdeu todo o seu encantamento. As árvores lá são pés de meias de seda, de roupas prontas, de chapéus, de sapato da moda e, mais do que tudo, de notas de mil:
“Os pés de notas de mil
carrega chega encapota
pode tirar-se a vontade
quanto mais tira mais bota
além dos cachos que tem
casca e folha tudo é nota”
Em outra passagem, novamente utilizando-se do adjetivo “decente” como qualificativo do povo do lugar, o autor sugere uma conduta irrepreensível, correta, das pessoas:
“O povo em São Saruê
tudo tem felicidade
passa bem anda decente
não há contrariedade
não precisa trabalhar
e tem dinheiro a vontade”
Aqui, aparece referências à ausência de trabalho, à felicidade ligada à abundância e ao prazer dos bens materiais, evidenciados em outros trechos do poema:
“Tudo lá é bom e fácil
não precisa se comprar
não há fome nem doença
o povo vive a gozar
tem tudo e não falta nada
sem precisar trabalhar”
O ideal contido no folheto aproxima São Saruê das descrições do Eldorado e da Cocanha.
(cartaz do filme, cuja imagem aparece também no livro contendo o roteiro e textos críticos. Extraído de http://www.memoriasdocordel.com.br/2014/04/o-pais-de-sao-sarue.html)
Vladimir Carvalho nasceu em 1935, na cidade de Itabaiana, estado da Paraíba.
O ano de 2003 marca o fim da restauração do seu filme O país de São Saruê.
A epopeia do filme inicia-se em meados da década de 60, quando da sua concepção. Finalizado em 1969, dois anos depois sofreu veto da censura federal. Permaneceu oito anos sem ser exibido. De enfrentamentos da ordem do financeiro às pressões psicológicas de origem política, o autor mesmo assim conseguiu que seu filme tivesse visibilidade e se consolidasse como importante produção do cinema documentário no país.
A história do seu filme pode ser contada como epopeia, assim como pretende Ariano Suassuna e o próprio autor com relação ao conteúdo da película: o filme narra uma “pequena epopeia malograda”, disse certa vez Carvalho, de quem Suassuna discordou quanto ao atributo “pequena”.
O filme conta com um poema de Jomar Moraes Souto, elaborado com base nas imagens do copião que Carvalho lhe exibiu em 67.
Vladimir Carvalho lembrou-se da história desse país “que desde pequenino/ sempre ouvia falar” na sua Paraíba , a mesma de Manuel Camilo. Lá, ainda menino, teve oportunidade de ler o folheto de feira Viagem a São Saruê. Considerou pertinente associar a “imagem da realidade”, que havia captado com suas lentes, à fantasia do povo representada no livrinho do poeta popular. Nomeou, então, o filme de O País de São Saruê. Vladimir percorreu o cotidiano do povo do campo e de cidades localizadas no sertão da Paraíba.
"Quando em Catolé do Rocha encontrei Chateaubriand Suassuna, mirrado debaixo do seu chapéu de couro, com sua foice na mão esquadrinhando a pequena propriedade de terras sáfaras, os olhos injetados de sonho obsessivo, em busca de um urânio salvador, entendi que ali o documentário virava “ficção”.
(Carvalho, 1986: 129).
Logo no princípio do filme, uma canção anuncia o teor do que virá:
“O avião sobrevoa, eh, eh
Um reino desencantado
O gavião vê de longe, eh, eh
as costelas do Eldorado
Pra onde ele levou tudo
Pra dentro de qual cercado
Acauã e seus redores
Num mesmo laço jogado”.
O São Saruê de fartura de Manoel Camilo dá lugar ao Eldorado à míngua, desprovido, faminto, raquítico, com as costelas à mostra. A palavra costela – da letra da canção – assume também seu sentido de armadilha para pássaros. Um pássaro sobrevoa a região agreste dos vales dos rios do Peixe e Piranhas, no estado natal de Carvalho. Letra de canção e imagens iniciais atuam, portanto, como síntese de enfrentamento, como que premeditando algo por ser interrompido.
A trilha sonora foi realizada pelos músicos José Siqueira e Marcus Vinícius de Andrade.
Sobre Marcus Vinícios de Andrade, a Revista de Cultura Vozes nº 9, de novembro de 1972, assim o apresenta: "Compositor premiado em festivais de Recife (PE) e Cataguases (MG). Ex-professor de Estruturação Musical do Instituto Villa-Lobos. Autor de "idolatrina" (poema/processo, 1968).
Creio que as primeiras canções de Marcus Vinícius que ouvi foram "Trem dos condenados" e "Novena", esta em parceria com Geraldo Azevedo que, assim como ele, é pernambucano.
Exerceu papel importante na atuação e debate dos direitos e do papel do músico no período conturbado da ditadura militar no Brasil e foi uma das figuras principais a colaborar com as pesquisas realizadas por Marcus Pereira naquela que foi a sua gravadora e uma das mais importantes iniciativas fonográficas de mapeamento da música realizada em território nacional ao longo da década de 1970.
A canção São Saruê, de Marcus Vinícius de Andrade, encontra-se em seu lp Dédalus, de 1974, onde apresenta a cantora Anah.
(São Saruê, música de Marcus Vinícius. Extraído de: https://www.youtube.com/watch?v=qLyYY_VqPaE)
O avião sobrevoa, eh, eh
Um reino desencantado
O gavião vê de longe, eh, eh
As costelas do Eldorado
Pra onde ele levou tudo
Pra dentro de qual cercado
Acauã e seus redores
Num mesmo laço jogado
Em cima daquela serra, eh, eh
Tem um tesouro enterrado
Com suas garras de aço, eh, eh
O gavião voa baixo
Ouro, prata, diamantes
E o algodão em penachos
Nascendo da terra seca
E dos ossos desse riacho
O avião sobrevoa, eh, eh
Um reino desencantado
O gavião vê de longe, eh, eh
As costelas de Eldorado
E a balança dos contentes, eh, eh, eh
Pesa a sede dos magoados
Nascido em Angical (PI), Climério foi o primeiro filho de uma família de migrantes a se deslocar para Brasília durante os anos 60. No momento em que o cineasta Vladimir Carvalho se instalou em Brasília e passou a dar aula, Climério tornou-se seu aluno e amigo.
O poema de Climério é a apropriação do tema de São Saruê sob um outro olhar. A cassação e censura ao filme de Vladimir são o mote para que se elabore um discurso de defesa e explicitação das diferenças, no momento em que se professava o “milagre” da economia no país, sob um regime de exceção. Sendo ele próprio um migrante, vindo de um estado da federação tido como dos mais pobres, Climério Ferreira fora “interpelado” tanto pela abordagem dada por Carvalho à questão das diferenças – mais às questões do imaginário, com as quais, certamente, se identificara – , quanto pelo próprio destino que o bem cultural em si – o filme – teria levado.
O poema São Saruê, um país trabalha com empréstimos da realidade tratada no filme e da realidade do próprio filme/objeto, conjugando a utopia de ver ambas na mesma perspectiva de libertação. Climério Ferreira conhecera na infância a história do país da fartura, de “ouvir falar”. Em seu poema, ele inverte o sentido de doação contido no folheto: aqui, não é a natureza da cidade/país de São Saruê que produz a fartura, é o homem que a habita que oferta a ela sua vida:
“aqui está meu sangue: bebe
aqui está meu corpo: come
aqui está minha boca: cospe
aqui está meu pé: pisa
aqui está minh’alma: agoniza”.
O habitante desse país se entrega generoso à sua pátria triste que o proíbe de ser e ver e que ele sonha transformada:
“aqui estou não-morto adormecido
velando teu sono despertado
nas terras de um país nunca havido
mas que completamente me habita
país sem fronteiras
contrário do que existe
sonho exagerado do que é
que – não sendo – é requerido”
A recuperação da memória de um país marcado pela injustiça social, pelo não-dito, é referenciada nos versos
“meu país é um sonho que esconde um pesadelo”
e
“em minha cabeça
deposita tuas lembranças
fracas pinças lanças
fragmentos de tudo que é hoje”
e, ainda,
“ou o furo desastroso do teu passado”
O pesadelo/escuridão como um dado da realidade objetiva impedia o indivíduo de requerer sua visibilidade como sujeito, como cidadão. Era um quadro que impedia a circulação dos componentes concretos da realidade objetiva em sua plenitude, silenciando-os. A dimensão utópica dessa São Saruê, “anárquico chão que me povoa”, se confunde com a própria prática de poder “assistir” a uma imagem projetada na tela de uma sala escura. Silêncio, pesadelo, impedimento, escuridão, rompidos pela luz projetada ante o olhar que vê:
“pois neste país São Saruê tudo será
aquilo que – por querer – o olhar veja
(...)
verás sempre um país como este
de luz e sombra sua topografia
que quando projetada ante teus olhos
mostrará meu riso desdentado e faminto
(...)
qualquer dia ou noite ou tarde
meu povo de luz invadirá tuas salas”
O corpo do cidadão, raivosa e ironicamente descrito como “corpo dócil”, passivo, adquire, no entanto, a capacidade instrumental de transformar o estado de coisas em “um banquete cívico interminável”, após seu desvelamento.
São Saruê de Climério é quase como o “pensamento” de Manuel Camilo, pois o que o anuncia é um
“vento sereno vento
esse que sopra no interior da gente
roçando de leve os intestinos
encrespando suave o coração”.
Climério Ferreira representa a aproximação da temática do São Saruê à poética da canção popular. Foram seus irmãos Clodo e Clésio Ferreira que fizeram a inserção desse tema no campo da música popular brasileira ao colocarem melodia em fragmento do poema São Saruê, um país. Registrada em disco, por Clodo, Climério e Clésio (1979), no segundo LP de carreira dos irmãos, a canção recebeu o título de Oferenda e contou com a participação do cearense Raimundo Fagner em sua interpretação. Oferenda se inscreve, assim, no âmbito das canções originadas da re-significação dos motes dos folhetos de feira, como práticas identificadas na formação do grupo de artistas nordestinos . Eis o trecho do poema adequado à canção:
Aqui está meu sangue: bebe
aqui está meu corpo: come
aqui está minha boca: cospe
aqui está meu pé: pisa
aqui está minh’alma: agoniza
aqui estou comido/ estou cuspido
estou pisado/ agonizante, teu.
O poema completo encontra-se publicado em FERREIRA, Climério. Alguns Pensames. Brasília – DF: Tao Livraria e Editora, 1979.
("Oferenda", de Clodo Climério e Clésio, gravada no lp Chapada do corisco, de 1979. O texto da canção, originalmente em português, foi vertido para o francês e cantado nos dois idiomas pelos irmão Ferreira e Fagner, conforme podemos conferir pelo áudio acima. Extraído de https://www.youtube.com/watch?v=FixKTs6xiwU)
Tinhorão, em Cultura Popular - temas e questões, trata da poesia de Manuel Camilo. O livro de José Ramos Tinhorão possui edição pela Editora 34, do ano de 2001.
Bráulio Tavares também, em seu Contando histórias em versos, dedica um capítulo ao São Saruê. Seu livro também foi publicado pela Editora 34, em 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário