quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Entrevista com o compositor Ednardo

(por Magno Córdova)

Não será equivocado apontar a obra do compositor cearense Ednardo como das primeiras motivações que tive para realizar um trabalho sobre a música no Brasil, em especial sobre a música produzida na região Nordeste e sua projeção dentro do território nacional. A escuta atenta de seu repertório, desde muito cedo, aliada ao interesse crescente por conhecer lugares e histórias por ele cantados - o seu Ceará, principalmente -, mais a identificação de um percurso pessoal/musical criativamente rico foram, sem dúvida, elementos suficientemente convincentes de que eu me encontrava diante de um trabalho consistente o bastante para acionar campos de compreensão da nossa realidade através da nossa experiência musical. E, claro, a intensificação com que essa escuta se deu, por mim, em Minas e, particularmente, no vale do Jequitinhonha, fez com que minha cidade natal, sertaneja, ganhasse ares praieiros da Fortaleza e se fortalecesse em seus aspectos sertanejos com o Ceará de Ednardo; ao mesmo tempo em que moldava a representação da terra do artista com elementos de minha realidade mineira, identificando-as, em vice-versa. Não foi à toa a adoção do título de minha dissertação de mestrado, na Universidade de Brasília, a partir do empréstimo de versos de uma canção emblemática de toda essa experiência, de autoria do compositor: "Rompendo as entranhas do chão" (título principal do texto acadêmico) está em "Pastora do tempo", música presente no repertório do disco O azul e o encarnado, gravado em 1977, e que, ao longo do desenvolvimento da pesquisa, projetou-se como uma espécie de síntese do caminho tomado pelas reflexões por mim nela realizadas.

Capa do disco O azul e o encarnado, lançado por Ednardo, em 1977(*)

A entrevista a seguir foi realizada, portanto, durante minha pesquisa, concluída oficialmente em 2006. Até que eu me mudasse da capital federal para a cidade do Rio de Janeiro, onde tive oportunidade de aproximar-me pessoalmente de Ednardo, nossa comunicação se dava por e-mail. Foi por e-mail que ele me respondeu as questões que trago aqui a público. Esta entrevista não é inédita na internet: Ednardo a incluiu em seu blog, Zeca Zines, no ano de 2008 (cf. http://zecazines.blogspot.com.br/2008/12/rompendo-as-entranhas-do-cho.html). A diferença é que, neste caso, editei algumas imagens e canções mencionadas ao longo do diálogo, como maneira de lançar mais luz sobre os assuntos mencionados. Eu, já na época elevado à condição de colaborador especial do blog do Ednardo, me senti honrado de ter, da parte do artista, o reconhecimento pelo esforço empreendido em meu trabalho. Senão como alguém que fala "de dentro" do objeto analisado (o que poderia supor uma análise mais consistente, apoiada na experiência empírica), ao menos como observador atento posicionado "nos arredores" de sua manifestação. E este "lugar de fala", meio "estrangeirado", digamos, não deixa de ter sua importância, como que confirmando o alcance e ampliação territorial das obras daqueles artistas.

Segue, então, a entrevista com Ednardo.

Magno Córdova: Na época em que alguns dos parceiros do Ceará residiram em Brasília, no início da década de 70, vocês continuaram mantendo contatos? A concepção do disco coletivo Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem ocorreu quando todos (você, Rodger e Téti, principalmente) já se encontravam em São Paulo, ou a ideia de um trabalho conjunto, mais orgânico, já havia sido cogitada em Fortaleza?

Ednardo: Quando residíamos em Fortaleza, o tempo de todos era ocupado pelo aspecto de fazer músicas e letras, teatro, artes plásticas, etc, tudo que estivesse no contexto artístico. Também tínhamos nossos estudos em faculdades e trabalhos. Naquela época, até talvez por causa do curto tempo disponível de cada um, não existia na maior parte dos participantes a preocupação organizacional, projetos, ou cogitar trabalhos futuros. A vida era - como é - urgente! Claro que alguns tinham o enfoque de pensar o todo, entre eles Augusto Pontes, sem dúvidas, tinha esta visão futura, mas o pessoal, embora se reunisse sempre que possível, tinha tanta premência de se expressar em tão exíguo espaço de tempo. De certa forma, sabíamos que uma parte significativa das pessoas iria desaguar em outros espaços. Nossa cidade de Fortaleza, naquele momento, era pequena, ou não comportava tanta criatividade. Certo é que existia uma inadequação às propostas de todos naquele momento. Não sei se houve projeto arquitetado neste sentido, as necessidades de todos foram se desenvolvendo de forma grupal e individuais sem concepções à priori. O fato é que, no êxodo, existem direções em três partes: alguns foram para Brasília, outros para o Rio de Janeiro e outros para São Paulo. E sempre que possível mantínhamos contatos, claro que sem as facilidades de internet e comunicações de hoje em dia. Mas existia esta energia, que rolava sempre que era possível uma reunião. Às vezes maravilhosas, outras deixavam a desejar, era um tempo de exceção, ditadura, competição de espaços.


("Ingazeiras", autoria de Ednardo, abre o disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, de 1973, que posteriormente cunhou o trabalho dos artistas envolvidos com a nomenclatura Pessoal do Ceará. Vídeo extraído do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=XJXuPSSEpL8)

Nascido pela Ingazeiras
Criado no oco do mundo
Meus sonhos descendo ladeiras
Varando cancelas
Abrindo porteiras

Sem ter o espanto da morte
Nem do ronco do trovão
O sul, a sorte, a estrada me seduz

É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz
É ouro em pó, é ouro em pó
É ouro em pó que reluz
O sul, a sorte, a estrada me seduz

MC: Você se lembra - e pode narrar - a circunstância em que se deu o contato inicial com Climério?

Ednardo: A ponte inicial com o Climério foi feita pelo parceiro Augusto Pontes, em 72, após um show que realizei na UnB – Auditório Dois Candangos, para os estudantes de Brasília. Estavam presentes na platéia Augusto Pontes, Yeda Estergilda, Climério e Clodo e uma quantidade muito grande de estudantes e professores. Estava tudo lotado, cadeiras e no chão, tudo apinhado de gente. Para entrar no palco, já que todos acessos estavam bloqueados pelo excesso de pessoas, tive que subir por uma escada que arranjaram no momento e, através de uma janela lateral que ficava a uns dois metros de altura, dar um salto diretamente para o palco, pra delírio da platéia que comentou que foi uma das entradas em cena das mais sensacionais e inusitadas. No dia seguinte, os irmãos Ferreira convidaram para ir na casa de Dona Alice, matriarca da família. Lembro até hoje seu sorriso luminoso, com voz suave, pautada e amiga. Foi ótimo, tocamos violões, cantamos, tomamos cervejas e principalmente se fez amizade plena que resulta em várias parcerias artísticas.

(a canção "Estaca zero", gravada no lp Berro, de 1976, inaugura a parceria Ednardo/Climério. Gravada no mesmo disco, a parceria entre Ednardo e um outro piauiense, Brandão, intitulada "Vaila" havia sido finalista do Festival Abertura, no ano anterior).

Cada braça de caminho
Um soluço de saudade
Toda vereda de roça
Vai descambar na cidade

E a gente fica sereno
Desconhecendo o destino
E com um sorriso besta
De quem sabe onde chegar

A cada prédio ou palmeira
Luz de neon ou luar
Elevador, capoeira
A gente vai se assustar

Mas faz de conta que sabe
Que tem um canto da estrada
Chamado estaca zero
Onde a gente pode dizer
O rumo que quer tomar

Cada braça de caminho
Um soluço de saudade
Toda vereda de roça
Vai descambar na cidade

MC - Como foi que surgiu a ideia e como se deu a sua atuação junto aos irmãos Ferreira no primeiro disco da carreira do trio, o São Piauí?

Ednardo - Na casa de Dona Alice, escutei algumas músicas do Climério, Clodo e Clésio e gostei da sonoridade e letras daquelas músicas. Disse pra eles que, quando tivesse oportunidade, eu gravaria um disco com eles. Anos depois, Climério foi residir em São José dos Campos, São Paulo, em pós-graduação universitária, no INPE. Nossos contatos foram mais freqüentes, ele foi diversas vezes à minha casa em São Paulo e convidava para também ir a São José dos Campos. No Bar do Pedro, entre músicas, violões e cervejas, a ideia de nossa parceria foi sendo construída. Tinha a Frô do Avaré, Flying Banana (Carlão, Bê e Passoca), os shows que fiz em São José. Foi quando, em 76, a música "Pavão Mysteriozo" foi sucesso no Brasil e exterior e falei pro Climério: “Sabe aquele lance que conversamos em Brasília? Acho que agora eu posso sugerir para gravadora o disco de vocês”. O Cli tomou um susto e disse que o que eles estavam pensando era eu gravar músicas deles e eu disse que minha ideia era outra: eles próprios gravarem suas músicas. Foi uma noite de justificações do Climério tentando convencer que eles não eram artistas, não tinham voz pra isto, cada um já realizava outro trabalho diferente desta praia e eu tentando convencer que eles podiam, sim, gravar este disco com suas vozes. Terminamos a noite eu, o Cli, o Flying Banana, a Frô do Avaré (Evelise) sentados na calçada frente ao Banhado, que tem uma vista privilegiada pro Vale de São José dos Campos, era inverno e estava amanhecendo e, no brumado, lá ao longe, se via um trem envolto em neblinas. O céu se confundia com a terra e formava no difuso um espaço mágico e eu falei: "Olha ali, Cli. Está vendo aquele trem flutuando nas nuvens? Parece um cinema impossível, aquela máquina e seus vagões estão voando aos nossos olhos. Vocês podem sonhar um pouco mais e ver que é possível você e seus irmãos gravarem este disco?". Semanas depois, nos reunimos em São Paulo em quatro dias e noites, gravando no “Tenda Som” (pequeno estúdio em minha casa) umas vinte e tantas músicas em k-7 que levei à direção artística da RCA, (atual BMG), e o Cli falando: "Rapaz, isso é somente uns 'Pensames', eles não vão querer". Foi difícil convencer a direção artística da gravadora. Levei-os ao programa da TV Bandeirantes – Mambembe, produzido por Walter Silva, onde também o Pessoal do Ceará se apresentava semanalmente junto a outros participantes, e o Walter os colocou pra cantar. Chamei um assistente de direção artística da gravadora para dar uma olhada, pois no dia seguinte os irmãos Ferreira estavam voltando pra suas casas e, na prorrogação do segundo tempo, minutos finais, recebi o telefonema da gravadora autorizando a gravação do disco São Piauí. Fui avisá-los na Rodoviária de São Paulo, que ficava ao lado da Estação da Luz. Os ensaios e arranjos foram realizados em minha casa durante duas ou três semanas, junto aos músicos de base. O disco - entre gravações, mixagens, artes gráficas de capas - em pouco mais que dois meses. E o resto é história, deste disco inaugural da maior importância – São Piauí.

(Capa do lp São Piauí, primeiro dos irmãos Clodo, Climério e Clésio, lançado em 1977, produzido por Ednardo. A arte da capa foi assinada por Fausto Nilo)

MC - A música "Folia ou Pressa" tem algum significado histórico especial para você, ou a sua "(re) descoberta" se deu mais recentemente?

Ednardo - O disco Única Pessoa é formatado com objetivo onde minha ação principal é de intérprete. Há muito tempo queria realizar disco com esta característica. Escolhemos temas que se coadunavam e foram feitas seleções de mais de 80 músicas até chegarmos naquele perfil, com obras de autores de várias localizações abrangentes. Tem autores do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro, Goiânia, Paraíba, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e, além Brasil, tem música de autora de Cuba. Só interpreto músicas de outros quando gosto e somente quando me dá prazer em cantá-las. Então, vejo todas estas músicas de forma especial, mas entre umas e outras não existe um significado de diferença, Todas fazem parte do universo que não necessariamente representa histórico pessoal complementar. É mais por gostar de cantar, mesmo.

MC - No disco Cauim você gravou "Terezina - 40 Graus". (Eu não conheço o filme Cauim, onde talvez haja algum esclarecimento sobre a pergunta que se segue). Como foi - e é - sua relação com a cidade de Teresina, em particular, e com o território do estado do Piauí, de uma maneira geral?

Ednardo - Tenho proximidade artística e existencial com o Piauí, grandes amigos e amigas, alguns parceiros como Climério, Brandão, realizei produções artísticas como, por exemplo, na Massafeira, que resultou em disco duplo, onde estão Chico Pio, Ana Fonteles, Zezé Fonteles, Jabuti, todos eles do Piauí. Produzi o primeiro disco dos irmãos Ferreira - Climério, Clodo e Clésio. É uma lista representativa, que inclui também entre os amigos Cinéas Santos, Wellington Dias, Jorge Mello e tantos outros. Aliás, o Ceará e Piauí têm historicamente muitos itens em comum e complementares. A Serra da Ibiapaba é uma espécie de “fronteira” permeável. Existe história que antes o estado do Piauí não tinha em seu território parte que dava pro mar e os governos destes estados trocaram territórios, uma parte do pé de serra da Ibiapaba que era do Piauí por uma parte do litoral que era do Ceará – que hoje representa aquela faixa de Parnaíba. Além disto, tem o grande fluxo de seus habitantes que se dá em duas vias de mãos, corações e mentes, tanto do Ceará para o Piauí quanto do Piauí para o Ceará. Tanto que, tranquilamente, existe este fluxo há muito tempo, onde todos se sentem em sua própria casa.

("Terezina 40 graus" foi gravada no disco Cauim, lançado em 1978. Cabe em destaque a importância dos arranjos para violão nesse disco, que conta [às vezes simultaneamente] com 3 violonistas: o próprio Ednardo, Pepeu Gomes e Wilson Cirino).

Troca que troca que troca 
Lembranças 
Contra corrente do rio, 
Vai vapor 
Que também sem ti 
Posso navegar 
E cada instante de rio 
Me afasta 
De cada saudade do mar 
De cá, dá saudade do mar

MC - Você pode me falar a respeito da inclusão de "Rasguei o teu retrato" e "Na asa do vento" ao seu repertório discográfico?

Ednardo - Desde menino, escuto músicas de compositores, autores e intérpretes que antecederam nossa geração, contemporâneos e novos, tanto na área popular quanto clássica. É natural que esta memória afetiva esteja presente eivando vários momentos. Em meus discos, além de ter aberto espaços para inúmeras parcerias, vez por outra reservo alguns espaços para interpretar obras de outros autores, além destas que você cita tais como Cândido das Neves e João do Vale, Luiz Vieira, Belchior, Fausto Nilo, Petrúcio Maia, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Augusto Pontes, Graco, Stélio Valle, entre muitos outros, o que se concretiza mais claramente no disco Única Pessoa que gravei em 2000. Disco que realizei como intérprete de músicas de Chico Buarque, Milton Nascimento, Fernando Brant, Totonho Villeroy, Bebeto Alves, Nilson Chaves, Jamil Damous, Clésio Ferreira, Augusto Pontes, Maria Tereza Lara, Javier di Mar-y-Abá, Régis Soares, Chico Pio, Neudo Alencar, Rogério Soares, Lauro Maia, Humberto Teixeira, Antonio Cícero, Orlando Moraes, com uma única música minha em parceria com Chico César.

MC - A canção "Serenata pra Brazilha" foi composta à época do lançamento do Imã? É possível você falar sobre esta composição e sobre o lugar ocupado pela cidade de Brasília em sua trajetória?

Ednardo - "Serenata pra Brazilha" foi realizada durante a gravação do disco Imã, em 79, junto ao disco duplo Massafeira, os três discos foram lançados em 80. Esta música, inclusive, foi gravada somente com voz e violão, uma espécie de serenata pra uma cidade que talvez não comportasse serenatas, a não ser nas periferias das cidades satélites. Mas achei interessante contrapor o fato quase que impossível de se fazer uma serenata no plano piloto e suas asas, mais afeito às preocupações políticas partidárias e funcionalismo público. Mas não só isto: como uma espécie de toque de união geral à alma do povo brasileiro. A música foi gravada no disco logo após a composição feita. Gosto muito de Brasília, a ideia estética de cidade construída, de forma moderna e pensada, no Brasil. Tem outras cidades construídas desta forma, mas a ideia de conjunto arquitetônico de Brasília é fenomenal, nas concepções de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Mas não é só isto que me liga a Brasília: meu pai, Professor Oscar Costa Sousa, falava muito de Dom Bosco, de suas profecias, seus métodos de ensino, lia ensinamentos com constância, tanto que fundou em Fortaleza, como professor e diretor, o Ginásio Dom Bosco, no qual exerceu magistério por mais de 50 anos. Então veio a vontade de conhecer a concretização realizada por Juscelino Kubitschek, que igualmente lia Dom Bosco. Juntou-se ao fato que alguns parceiros e companheiros de artes também foram morar nesta capital e, ao chegar pela primeira vez, fiquei extasiado por sua energia. É lindo o cerrado, o planalto central tem de verdade coisas muito especiais, além de ser a concentração do status quo político da nação. Pois Brasília não é apenas a sede do poder político brasileiro. Nesta música, coloco Brasília com Z, a última letra das incógnitas, como se aprende na álgebra. Z, no alfabeto grego, também significa vida. Tenho muitos amigos em Brasília. Também é um desaguar de habitantes de todas as partes do planeta, é uma “ilha” e um “espaço-porto”, onde aí encontrei também os descendentes dos primeiros desbravadores, chamados “candangos”, que ajudaram construir a cidade, e nesta “cosmo-visão” a música já estava pronta e veio num repente.

(*) Informações e escuta do disco podem ser acessadas em https://ednardo.bandcamp.com/album/o-azul-e-o-encarnado-2

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