quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Flying Banana: música de romeiros e caminhoneiros

(por Magno Córdova)


Quem primeiro me chamou atenção para a existência do grupo Flying Banana foi o compositor e poeta Climério Ferreira, no ano de 2004. Eu morava em Brasília e organizava informações sobre a trajetória musical de Climério, tomada como uma das matrizes documentais de minha pequisa acadêmica. Assim, minha investigação me conduziu à cidade de São José dos Campos, São Paulo, de meados da década de 1970, onde ele residiu.

Climério nasceu em Angical, no estado do Piauí, e se fixou em Brasília no início da década de 60. No decênio seguinte, foi parar em São José, onde morou numa república de estudantes.


Quando mencionou o Flying Banana, Climério informou-me que ele próprio havia participado como co-autor de uma das canções presentes no repertório do LP, mostrando-a a mim: 





Mantenha distância (Chevrolet)
Composição: Antonio Celso Duarte (Bê) e Climério Ferreira

Se eu tiver um caminhão 
eu quero chevrolet, 
pra pisar na buraqueira 
e pra poder roubar mulher
Mas se eu tiver um caminhão 
eu quero chevrolet, 
pra pisar na buraqueira 
e pra poder roubar mulher

Carroceria eu boto 20 anos, 
meus amigos, minha vida, 
meus trapos, meus planos
No pára-brisas Brigite Bardot, 
a Marilyn Monroe 
e a morena flor do sertão

Antes que o asfalto sufoque o baião, 
eu quero ver a paisagem 
passando faceira, 
cheirando a rabeira 
do meu caminhão
eu quero ver a paisagem 
passando faceira, 
cheirando a rabeira 
do meu caminhão

O pára-choque do meu caminhão, 
escrevo a vida como a vida é
Não esquecendo que no fim das contas 
poeira de caminhão é vitamina de chofer
Não esquecendo que no fim das contas 
poeira de caminhão é vitamina de chofer

Na primeira audição, surpreendi-me com a sonoridade e com o repertório do disco. Passei a buscar mais informações sobre os seus componentes. Encontrei referências, inclusive, em outras fontes por mim recolhidas pra referida pesquisa a que me dedicava:

"(...) Climério foi residir em São José dos Campos, São Paulo, em pós-graduação universitária, no INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Nossos contatos foram mais freqüentes. Ele foi diversas vezes à minha casa em São Paulo e convidava para também ir a São José dos Campos. No Bar do Pedro, entre músicas, violões e cervejas, a ideia de nossa parceria foi sendo construída. Tinha a Frô do Avaré, Flying Banana (Carlão, Bê e Passoca), os shows que fiz em São José..."

Neste depoimento do cantor e compositor Ednardo aparecem os nomes de pessoas com as quais ele e Climério conviveram quando se consolidou a parceria entre os dois:  Frô do Avaré é a forma carinhosa como os amigos tratam Evelise Fernandes; Passoca é o apelido de Marco Antônio Vilalba; Bê é o apelido de Antônio Celso Duarte; e Carlão é Carlos Alberto de Souza. Eram todos estudantes de arquitetura naquela época. Dedicavam-se à música paralelamente aos estudos universitários. Frô do Avaré, Carlão, Bê e Passoca foram colegas de república de Climério na cidade do interior paulista:

Climério gostou muito do que os companheiros de república tocavam e compunham e os convidou para uma apresentação em Brasília.  Havia, à época, um projeto de extensão desenvolvido na UnB (Universidade de Brasília) que tinha por objetivo levar novos talentos musicais aos estudantes e à comunidade brasiliense em geral. O decano de extensão da universidade era Marco Antônio Rodrigues Dias, amigo de Climério, que não vacilou em incluir a sugestão na programação do calendário cultural da universidade.

Foi durante os preparativos para esta viagem a Brasília que os amigos decidiram que tocariam e cantariam em conjunto, todos reunidos no palco. Daí surgiu o Flying Banana. Frô do Avaré participou da apresentação em Brasília, mas não acompanhou o grupo quando o disco foi gravado, em 1977.

Após essa experiência, Passoca se dedicou ao estudo e pesquisa mais aprofundados da viola caipira. Já conhecia seu trabalho musical a partir da participação que fez em um disco emblemático do que se convencionou chamar “vanguarda paulistana (ou paulista)”: o disco Outros sons, de Eliete Negreiros. Cabe aqui um parêntese sobre esse disco.

Lançado em 1982, pelo selo Lira Paulistana, o que nele chama atenção é o fato da música de Passoca, “Sonora Garoa”, pertencer a uma tradição rural, caipira, com o toque de viola próprio do que seria legítimo chamarmos de “musica regional de São Paulo”, do interior do estado ou, ainda, do Brasil interior, campestre (*). Daí o aparente contra-senso de sua inclusão em um lp norteado pelas experiências dodecafônicas de Arrigo Barnabé e mesmo por um lado mais pop, urbano, de, por exemplo, Otávio Fialho, outro dos arranjadores aí presentes. Pois, “Sonora garoa” soa exatamente como o contra-ponto da modernidade musical paulistana daquele momento  e daquele disco. A canção de Passoca nos indica a permanência da sonoridade e do sentimento rurais no complexo contexto urbano da maior cidade do país, entre os primeiros automóveis do dia, sirenes de fábricas convocando para o trabalho, radinhos de pilha gritando com voz metálica as canções de um amanhecer paulistano. 




Sonora garoa
Composição: Marco Antônio Vilalba - Passoca

Sonoro sereno
serena garoa
pela madrugada
não faço nada que me condene
a sirene toca
bem de manhãzinha
quebrando o silêncio
sonorizando a madrugada

Passa o automóvel
na porta da fábrica
o radinho grita
com voz metálica
uma canção

Sonora garoa
sereno de prata
sereno de lata
reflete o sol

bem no caminhão

Voltando aos amigos da república de São José, dos componentes do Flying Banana, Carlão tocou com Elis Regina naquela segunda metade de década e acompanhou, dentre outros, o compositor Renato Teixeira (junto com Renato e outros músicos formou o Grupo Água). 

Para tentarmos dar conta do contexto de aproximação desses artistas, lembremos que Elis havia impulsionado a trajetória musical do cearense Belchior em um disco lançado em 1976, o Falso Brilhante. No LP do ano seguinte, ela gravou uma música de Renato Teixeira que acabou por se transformar em um clássico da música caipira, a canção “Romaria” - isso sem levar em conta as "leituras críticas" que esta canção recebeu, a partir de avaliações literárias "concretistas" que o texto da canção sugere, colocando-a no mesmo caldeirão poético dos textos das canções tropicalistas, por exemplo. Na gravação de “Romaria”, Carlão foi um dos instrumentistas que acompanhou Elis, na viola de 12 cordas e nos vocais.

Além do fato de terem sido lançados no mesmo ano e de contarem com Carlão como intérprete/instrumentista, esse lp de Elis e o do Flying Banana possuem o dado comum da aproximação temática entre “Romaria” e “Pirapora”, esta última uma composição de Antônio Celso Duarte, o Bê,  gravada no álbum do grupo. Ambas possuem o estilo e a atmosfera comuns, tendo por pano de fundo a religiosidade inscrita no território da cidade paulista de Pirapora do Bom Jesus, situada a pouco mais de 50 Km da capital:



Romaria
Composição: Renato Teixeira

É de sonho e de pó, o destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó, de gibeira o jiló,
Dessa vida cumprida a sol

Sou caipira, Pirapora Nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida

O meu pai foi peão, minha mãe solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
Em busca de aventuras
Descasei, joguei, investi, desisti
Se há sorte eu não sei, nunca vi
Me disseram porém que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar, só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar

(no vídeo abaixo, a música "Pirapora" encontra-se aproximadamente no tempo 25:53)


Pirapora
Composição: Antônio Celso Duarte (Bê)

Eu vou seguir
Poeira, mato, asfalto afora
Barba comprida
Cabelo grande que nem de muié
Mariazinha diz que me namora
Eu vou cumprir minha promessa
Eu vou a Pirapora a pé
Meu Bom Jesus de Pirapora
Agüenta aí a sua cruz
Eu vou chegando sem demora
Eu vou e volto umas três vez
Juro por Deus Nossa Senhora
Quando eu voltar
De Pirapora a pé
Eu vou fazer uma casinha 
De sapé
Eu vou levar Mariazinha
Eu vou tocar minha viola 
Vou deitar a minha rede
No meu pé de carambola 
Eu vou a Pirapora a pé

É inevitável a associação entre as duas canções, até mesmo antes de sabermos qualquer informação "genealógica" que envolve seus atores e registros. Nesse sentido é que poderíamos falar de um “espírito do tempo” sendo reproduzido, gerido, interpretado, representado através dessas canções.

Fechando o repertório musical deste comentário, deve-se reconhecer o papel exercido pela TV na disseminação de um quadro cultural e temático muito bem estruturado em suas determinações e projeções sociais. Nesse sentido, torna-se legítimo reconvocar a figura de Renato Teixeira, agora assumindo o protagonismo do chofer de caminhão. Personificada pelos personagens Pedro e Bino (Antônio Fagundes e Stênio Garcia), do seriado Carga Pesada, a canção "Frete" conduziu a trilha desse programa Brasil adentro/afora, "religiosamente" assistido por zilhões daqueles que se transformaram em figuras coletivas emblemáticas daquela geração: os telespectadores.   


Frete
Composição: Renato Teixeira

Eu conheço cada palmo desse chão
é só me mostrar qual é a direção
Quantas idas e vindas meu deus quantas voltas
viajar é preciso é preciso
Com a carroceria sobre as costas
vou fazendo frete cortando o estradão
Eu conheço todos os sotaques
desse povo todas as paisagens
Dessa terra todas as cidades
das mulheres todas as vontades
Eu conheço as minhas liberdades
pois a vida não me cobra o frete
Por onde eu passei deixei saudades
a poeira é minha vitamina
Nunca misturei mulher com parafuso
mas não nego a elas meus apertos
Coisas do destino e do meu jeito
sou irmão de estrada e acho muito bom
Eu conheço todos os sotaques
desse povo todas as paisagens
Dessa terra todas as cidades
das mulheres todas as vontades
Eu conheço as minhas liberdades
pois a vida não me cobra o frete
Mas quando eu me lembro lá de casa
a mulher e os filhos esperando
Sinto que me morde a boca da saudade
e a lembrança me agarra e profana
o meu tino forte de homem
e é quando a estrada me acode
Eu conheço todos os sotaques
desse povo todas as paisagens
Dessa terra todas as cidades
das mulheres todas as vontades
Eu conheço as minhas liberdades
pois a vida não me cobra o frete

Por fim, digo que foi o impacto da escuta de trabalhos como o do Flying Banana, tão representativo do momento foco do meu objeto de estudo, um elemento de impulso. Algo que não foi - nem será - incomum em qualquer trajetória de pesquisa, tantas foram e são as experiências de escuta que nos tomam pelo pé, pela mão, pelo peito. Todas elas acionando estruturas mentais e corporais guiadas pela escuta. 

Como mote futuro de uma outra consideração, fica o referencial de mais uma experiência musical adquirida nesse contexto: da Banda Santarén, mais ou menos contemporânea do Flying Banana. Que será a carga dum próximo embarque.

(*) "Sonora garoa", numa outra frente significativa, que reforça a teia de relações aqui ligeiramente esboçada, entrou na trilha sonora de um filme necessário da cinematografia brasileira da época, cuja abordagem temática ilustra o universo aqui abordado: A marvada carne é um filme dirigido por André Klotzel. Vale muito ver.  

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