(por Magno Córdova)
No dia em que fui me encontrar com a
escritora Ana Miranda, acompanhado pelo amigo comum e poeta Nicolas Behr,
sabia que iria me deparar com uma mulher bonita. O papo aconteceu em um bar na
Asa Norte, em Brasília. Eu já havia entrado em contato com a Ana através de
e-mail, objetivando entrevistá-la. A ideia era abordar assuntos que
pudessem ajudar-me no desenvolvimento da pesquisa de mestrado que então eu
realizava na UnB. Ela topou ajudar-me e pediu para que eu elaborasse algumas
questões e as enviasse também por e-mail, o que fiz de imediato. Portanto, sem
saber que eu iria encontrá-la antes mesmo de receber as respostas às questões que
elaborei, ela apareceu em Brasília e, sabendo que eu me encontrava na cidade e
que era também amigo do Nicolas, me convidou através dele para sentarmos os
três num bom lugar e curtir um pouco o astral da cidade. Um privilégio enorme
pra mim sentar-me com os dois. Mais do que uma bela mulher que, além do mais,
havia me fascinado com o texto do livro “Boca do inferno”, nos anos 90, estive por algumas horas diante
de uma bela criatura, sem afetações de qualquer ordem, me recebendo como se eu
fora amigo dela e do Nicolas desde os tempos em que eu sequer supunha aquela
cidade, aquele encontro, aquela conversa. As questões respondidas pela Ana me
chegaram logo depois, sequência desse encontro, e me foram muito úteis ao trabalho.
Parte do que registrei como levantamento de tudo que ela havia realizado (em
especial naquilo que tangenciasse o objeto de minha pesquisa) continua inédita
e parte eu aproveitei no texto final da dissertação. Não é demais lembrar que o
texto final da dissertação foi recomendado ao prêmio Funarte de Produção
Crítica em Música, seis anos após sua defesa, em 2012. Agradeço também à Ana - e
a todos que estiveram por perto - a honra por ter recebido essa recomendação. Afinal, ela também contribuiu para que o resultado fosse o que foi.
Segue, então, a entrevista com as 10
perguntas enviadas por mim e respondidas pela Ana Miranda, por e-mail.
(aqui, dois momentos de Ana Miranda: em 1969, mais ou menos à época de sua aparição no mundo da música brasiliense, junto à irmã Marlui; e em 2006, quando se deu nosso encontro e ano em que concedeu a entrevista abaixo. Fotos extraídas de http://www.anamirandaliteratura.com.br/).
Entrevista a Ana Miranda, enviada em 29 de junho de 2006.
1 – Você teve alguma formação musical fora do âmbito do
ensino regular? Se sim, onde e o que você estudou?
Ana Miranda: Em Brasília, estudei piano com professora particular, e
aprendi a tocar violão, com minha irmã, Marlui Miranda, que por sua vez
aprendeu com professora particular.
2 – Quais eram, à época, os lugares de Brasília que você
freqüentava onde se podia ouvir a música popular feita pelas pessoas da cidade?
Ana Miranda: Íamos com freqüência ao Bar dos Inocentes, acho que ficava
ali na 103, ou 303, ou 4, ninguém se lembra. Era um local de encontro de
sambistas e chorões. Lá estavam sempre o Luís Marçal, autor de "O meu amor
chorou", o Cydno da Silveira com seu atabaque, o pessoal do Quiquerias,
bandolinistas, tocadores de cavaquinho ou violão. Ali tocavam e compunham,
madrugada adentro. Minha irmã e eu íamos escondidas de nossos pais. Sugiro que
você entreviste o Luiz Marçal e o Cydno da Silveira, que devem ter lembranças
bem mais precisas desse período, na área de música.
3 – Há a informação na biografia de Marlui Miranda que diz
respeito a um festival ocorrido em Brasília, em fins dos anos 60, do qual ela
foi vencedora. Creio que esse foi o mesmo festival que você nos informa na sua
crônica “O meu amor chorou III”. Você participou desse festival, também no
palco? É possível descrever a memória que você possui da atividade musical
envolvendo esse evento para além do que você escreveu em sua crônica?
Ana Miranda: Minha irmã, Marlui Miranda, não queria participar do
festival, mas eu inscrevi duas de suas músicas, sem que ela soubesse, entreguei
as fitas, e foram classificadas, creio que as duas. Ensaiamos com o regional do
Avena de Castro, e apresentamos as duas músicas, minha irmã e eu cantávamos,
vestidas de um longo preto, creio que o Cydno tem fotos desse festival. A
música que entrou como finalista foi uma embolada, não me lembro do título, mas
da letra, sim:
Mas como é boa essa vida desregrada
de não ter que fazer nada, de brincar o ano inteiro
Meu violão já está me dando calos
eu nem sei se sigo, ou paro, nesta vida sem dinheiro.
Foi noutro dia que eu perdi o meu emprego,
meu sustento, meu sossego, e nem dei satisfação
pois desse jeito eu vou trocar de moradia
a cobrança, todo dia, vai bater no meu portão.
E pra princípio de conversa de otário
foi no conto do vigário, quem levou meu paletó
levou também meu rádio transistorizado
a chuva me deixa ensopado, eu estou nu de fazer dó.
O fato é que eu fiquei no ora-veja
nunca mais bebi cerveja e nem vi Rosa no portão,
E pra completar minha desgraça, juro, não sei o que faça
pois perdi meu violão. (Foi a polícia, meu irmão - breque)
Creio que é assim, a letra. Minha irmã venceu o festival,
melhor canção, e ganhamos melhor interpretação. O presidente do júri era o
Jacob do Bandolim. Ele quis nos levar para o Rio, queria que nos
apresentássemos na tevê, no programa do Flávio Cavalcanti, e em outras
programações, queria que nos tornássemos profissionais, como uma dupla de
cantoras, mas éramos muito jovens, eu tinha por volta de 15 anos e minha irmã,
17, tínhamos nossa vida em Brasília, que amávamos, e fazíamos música por amor,
não pensávamos em nos tornar profissionais, muito menos do show business. Nossa
mãe comentou, “minhas filhas são muito intelectuais”. Ficamos famosas em
Brasília, na escola, até nas ruas, pois demos entrevistas na tevê local, e
saímos nos jornais, etc. Esse material deve existir em arquivos.
4 – Havia intercâmbio entre os moradores do Plano Piloto e
os das cidades satélites no campo da canção popular? Como você via essa relação
na Brasília daquela época?
Ana Miranda: Muitos dos músicos que tocavam no bar dos Inocentes, ou no
conjunto do Avena de Castro, ou em outros grupos e locais, eram moradores de
Taguatinga, Sobradinho... o Cydno saberia melhor recordar esses nomes. Nós não
íamos às cidades-satélites, mas ela vinha ao plano piloto.
5 – Havia o que poderíamos chamar de uma “cultura de rua” em
Brasília, na época? A Universidade de Brasília era o espaço por excelência de
atuação artística dos habitantes da cidade?
Ana Miranda: Cultura de rua, sim, nos bares, na rodoviária onde
terminávamos a boemia com um caldo de cana e pastel, ou na W-3, no Beirute, na
UnB, no CIEM, havia uma forte vida cultural em Brasília, pouca coisa vinha até
nós, e fazíamos nossas próprias peças de teatro, nossos concertos de música, nossos festivais, fizemos até mesmo
um filme, na UnB (Nuno César de Abreu e Augusto Jr., Fernando Duarte), eu fui
convidada a protagonizar – a cinemateca apresentava bons filmes – fazíamos
nossas roupas em casa, sandálias de tiras de couro, nossas pinturas, minha irmã
fazia jingles de propaganda da bibabô, da Honda, lembro-me de uma exposição do
Burle Marx, do balé Bolshoi, havia alguma coisa, sim, de fora, a vida cultural
era intensa, a arte era tudo em nossas vidas, para um grupo de pessoas, a
música, a pintura, o desenho, a poesia. O Rio era uma referência, amávamos o
Rio, e prestávamos atenção a tudo o que acontecia no Rio, participamos da
polêmica Caetano versus Chico, éramos Chico, politizados, Brasília sempre foi
altamente politizada, as conversas eram ou arte ou política, aprendíamos as
músicas, recebíamos os discos compactos ou lps, aprendíamos as letras e a
tocá-las no violão. A UnB não era espaço por excelência, não, era um dos
lugares, mas era uma universidade fabulosa, nada acadêmica, havia lugar para o
academicismo mas também para as manifestações espontâneas, eu freqüentava as
aulas do ICA (era assim que se chamava), Instituto Central de Artes, mesmo
quando estudava no CIEM, os professores eram nossos amigos e companheiros
artísticos, davam-nos aulas junto com a vida que corria por todo lado, pelo ar,
pelo nosso sangue, eram o Luís Áquila da Rocha Miranda, o Gastão Manoel
Henriques, o Coutinho, o Fisberg, a Viviane, o Fábio Magalhães, e no verão,
cursos com Edgard Duvivier, ou Flávio Mota. Fizemos um trabalho sobre o
Dadaísmo, que consistia numa fita gravada, com música incidental, e um desenho
animado feito com restos de celulóide arranhados e trabalhados com química,
embrulhamos as árvores do ICA com jornal, fizemos uma falsa apresentação de
balé, enfim, era fervilhante. Na UnB, no CIEM, estava o Eudoro Augusto, poeta,
e o Afonso Henriques Neto, que me inspiravam a secretamente escrever poesia, eu
a minha irmã fazíamos livros manuscritos, eu escrevia memórias ficcionais,
anotava sonhos, desenhava sem parar, fiz um painel de flores na parede do
quarto, tínhamos uma coleção de discos de jazz fabulosa, emprestada pelo Sérgio
Fiúza, autor de O meu amor chorou, junto com o Marçal – enquanto ele estudava
na França. Todos os sábados íamos ouvir o regional do Avena, e o Jacob do
Bandolim, durante o tempo em que ele ficou em Brasília. Havia a revista Senhor,
importantíssima fonte de informação, vinha a eleição cultural de grandes
artistas, autores, ali conheci Clarice, e li G. Rosa (davam na escola). Enfim,
uma avalanche de lembranças artísticas.
6 – Sendo natural de Fortaleza e tendo morado em Brasília e
na cidade do Rio, em que momento a música popular feita por outros migrantes de
seu estado natal, surgidos em fins dos anos 60 e ao longo dos 70, passou a
chamar sua atenção?
Ana Miranda: Quando surgiram Fagner, Belchior, Amelinha, eles chegaram
até nós via indústria cultural, via gravadoras, rádio, discos. Eu não os via
como cearenses, eram nordestinos, vinham junto com pernambucanos (Alceu,
Geraldinho) ou paraibanos (Zé Ramalho, Elba), mas acho que eu já estava no
Rio, mudei-me de Brasília em 1969, final de 69, voltei uns meses para lá, em 70
fui de vez para o Rio.
7 – Você chegou a ter conhecimento do trabalho dos irmãos
Clodo, Climério e Clésio no período em que morava em Brasília? Se sim, em que
circunstâncias?
Ana Miranda: Não.
8 – Em sua crônica “O meu amor chorou III” lemos que
aprender aquela canção “dava-nos uma vontade de ser boêmios, de passar a noite
tocando e cantando pelas ruas ao luar... até o amanhecer.” Logo depois você
fala das dificuldades entre as obrigações e o prazer. As dificuldades a que
você se refere, da vida boêmia em Brasília, estavam relacionadas à conformação
urbana da cidade – cujo traço parece não facilitar o advento da “serenata”, na
sua forma tradicional, em cortejo – ou ao momento político que vivia o país? Ou
são de outra natureza?
Ana Miranda: A letra da música esclarece: faço força pra ficar em casa
sossegado, mas, amor, é tão difícil a gente se conter. Talvez eu me referisse à
divisão que existe, dentro de cada artista, entre o produtor e o consumidor,
entre viver e criar, entre viver e trabalhar, creio que foi nesse sentido.
Sempre tive esse conflito, sempre tivemos. No caso do autor, o Marçal, entre a
boêmia e o trabalho, entre o bar e o escritório, entre a família e a madrugada,
entre, enfim, a arquitetura e a música.
9 – Considerando que você residiu em Brasília até o início
da década de 70, o que, a seu ver, foi alterado no cotidiano da cidade após o
advento do AI-5?
Ana Miranda: Ficou mais apertada a nossa vida política, eram mais
comícios, mais correria, mais medo. Mas nunca deixamos de ir ao nosso Bar dos
Inocentes, ou ao Beirute, nem de fazermos nossas rodas no gramado da UnB, e
como éramos muito jovens, apreciávamos o perigo, íamos a reuniões secretas de
estudantes, ouvíamos o Honestino, ficávamos atentos às “palavras de ordem”,
amanhã comício em tal lugar, tal pessoa foi presa, manifestações em tal lugar,
reunião secreta em tal lugar... mas a arte continuava espessa e assídua em
nossas vidas.
10 – Qual é a sua opinião acerca das análises que aproximam
a poesia da letra de canção como dado marcante na cultura brasileira dos anos
70? (Se possível, e se você achar pertinente, tome como referência a canção
“Araguaia”, de sua autoria com Marlui Miranda).
Ana Miranda: São bem diferentes, letra de música e poesia, a criação é
diferente, a intenção é diferente, o processo é diferente, o sentimento é
diferente, o ritmo, a marcação, tudo é diferente, mas não importa, para mim não
importa, e acho que nem para os poetas, essas questões são mais importantes
para os críticos. Sei que nos anos 1970 muitos poetas faziam letras de canções,
isso pode ter aproximado uma de outra, na época, mas não sei se podemos dizer
que uma letra de música é poesia, algumas são mais, ou menos poéticas, pode
haver poesia numa letra de música, mas isso não a torna poesia, e há chamadas
poesias em livros que nada têm de poético, são apenas frases, anotações de
sentimentos, ou letras de música, ou outras coisas. Araguaia eram uns versinhos,
uma poesiazinha muito simples e ritmada, e a minha irmã a musicou, e passou a
ser letra de música, mas no livro continua a ser poesia, quer dizer, o pouco de
poesia que há naquele livro tão infantil que eu publiquei, o livro são
tentativas de escrever poesia, mas há pouca poesia.
Tanto faz
como tanto fez
há cada vez
menos nitidez
nos limites
entre os gêneros (isso é poesia?
não sei, tanto faz
como tanto fez).
(Abaixo o endereço [extraído do Youtube] do lp Revivência, de Marlui Miranda, lançado em 1983, onde se encontra a música "Araguaia", parceria entre ela e a irmã Ana Miranda. No contexto do objeto da pesquisa que motivou a entrevista com a escritora, há uma música dos irmãos Ferreira [Clodo, Climério e Clésio], intitulada "Timom", também gravada neste lp. Clodo, Climério e Clésio são os protagonistas do que poderíamos chamar de "vertente piauiense/candanga" da pesquisa em foco, realizada junto à UnB. Vale ouvir todo o lp da Marlui, assim como toda sua obra):
https://www.youtube.com/watch?v=ewt0wxkTzv8
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