quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

De borracha e música na Amazônia

(por Magno Córdova)

Sendo a música brasileira o fio de meada de tudo o que aqui se escreve, permito-me introduzir a Amazônia partindo de Recife. É que a memória que surge como lastro para o texto que publico adiante sobre a "Borracha" tem seu marco inicial aí, no encontro entre Pernambuco, Maranhão (território de transição, onde  a mata começa a se descortinar) e Pará.

Na década de 70, foi pelo Quinteto Violado que a Amazônia surgiu pra mim como universo temático de canções, a partir do LP Até a Amazônia ?!, lançado no ano de 1978. Nele eu soube da existência do trabalho poético de João de Jesus Paes Loureiro (nascido no Pará) e José Chagas (nascido na Paraíba, mas radicado no Maranhão).



Ali, reforçaram-se o encantamento natural e os misticismos dele surgidos. tanto quanto a dimensão crítica das mazelas vividas pela população local.

Recentemente, José Chagas teve parte de seu trabalho reunido em disco, intitulado A palavra acesa de José Chagas.

João de jesus Paes Loureiro possui um cd reunindo também parte de sua obra poética. Intitula-se O poeta e seu canto - Cantar dos encantados: pássaros da terra. 

É, no entanto, do repertório do Até a Amazônia?! que me ocorre a trilha musical da história econômica da região, informada pelo historiador Caio Prado Júnior.

Uma das canções que extraio do disco foi composta por dois integrantes do Quinteto, Marcelo Melo e Toinho Alves. É uma música de não-amazonenses que, inserida naquele projeto, resultou por nortear musicalmente todas as informações contidas no universo verbo-visual narrado no disco sobre a região (ou sobre o que em ambas - Nordeste e Norte - não se afasta, não se delimita, não se rompe com a geografia). Soa feito aquilo que José Miguel Wisnik descreve como "meio metafísico de acesso ao sentido para além do verbal". É que "Gravatá" (nome de município pernambucano), a música, é a única faixa instrumental do disco e nele encerra o lado B:  cada ruído, cada nota e som fazem parte, pra mim, de um cenário amazônico.
Ei-la:


E, aqui, o que me deu de escrever sobre a região, após a leitura do Caio Prado e a partir dele:

          Nos primeiros dez anos do século XX, a lavoura cafeeira no Brasil dividiu o espaço no balanço da produção do país com uma outra atividade: a extração da borracha. O Brasil possuía a maior reserva mundial de seringueiras nativas, árvore típica dos trópicos americanos e que fornece aquele produto. A grande escalada em torno da exploração da seringueira no país está proporcionalmente ligada ao desenvolvimento da indústria mundial da borracha. Ainda no século XVIII, observou-se que a borracha servia para apagar traços do lápis. No século seguinte, tornou-se possível a utilização do produto em vestimentas impermeáveis, graças à obtenção da essência de hulha a partir da sua dissolução. A borracha passa a ser largamente aproveitável na indústria quando é descoberto o processo de vulcanização, em 1842, por Goodyear nos Estados Unidos e Hancock na Inglaterra. Esse processo de vulcanização consiste numa combinação de borracha com enxofre que dá à borracha grande flexibilidade e a torna inalterável a qualquer variação de temperatura. Com a larga difusão do automóvel em fins do século XIX, o emprego da borracha para revestir os aros das rodas dos veículos a torna uma das principais matérias-primas industriais. A partir desse quadro evolutivo, podemos apreciar o avanço da exploração dos seringais para exportação da borracha no Brasil: em 1827 são embarcadas para o exterior 31 toneladas do produto; em 1880 esse número alcança o montante de 7.000; na primeira década do século XX, a média anual atinge 34.500 toneladas, representando 28% do total das exportações brasileiras.

         A região amazônica sempre viveu o problema da escassez populacional, devido às dificuldades características da floresta enfrentadas pelo homem. No final do século XIX, em pleno auge da exploração da borracha, uma contingência natural desfavorável de outra região brasileira permitiu estabelecer-se uma forte corrente migratória para a Amazônia: entre os anos de 1877 e 1880 o nordeste brasileiro foi assolado por um período de seca que agravou a condição miserável do seu povo. Buscando melhores perspectivas de sobrevivência, uma grande massa de nordestinos se deslocou para a região que oferecia oportunidades de trabalho mais favoráveis. Isso pode ser constatado pelos dados de produção e exportação da borracha no período: se em 1880 a exportação da borracha foi de 7.000 toneladas, em 1887, após o afluxo da mão-de-obra nordestina, esse número subiu para 17.000. Naquele ano de 1887, a maior produção se verificou na bacia do médio rio (antiga província, atual Estado do Amazonas). Posteriormente, nos primeiros anos do século XX, entra em cena uma nova região produtora: a do alto curso dos tributários amazônicos Purus e Juruá. Região habitada apenas por povos indígenas e riquíssima em seringais, se transformará em palco de um conflito internacional envolvendo o Brasil e a vizinha Bolívia. Os bolivianos ocupavam nominalmente a região com alguns postos militares. Após quatro anos de tentativas de negociação, conflitos e insurreições, foi assinado o Tratado de Petrópolis, em 1903. Pelo tratado, o Brasil adquiriu uma área de 200.000 Km², tendo que pagar à Bolívia 2 milhões de libras esterlinas. Em 1904, a área passou a ser denominada de território do Acre, que só viria se transformar em estado no ano de 1962.

Pausa para duas canções: a primeira com texto de João de Jesus, musicado por Marcelo Melo; a outra é uma lenda da região amazônica, em texto de João de Jesus e música de Toinho Alves:


(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=eEKCLvP5CU0)

Canção marginal
Composição: João de Jesus Paes Loureiro e Marcelo Melo

Vou na margem desse rio
Desse rio chamado tempo
Tempo que parece sempre
Amazônico lamento

Lamento de quem se afoga
E se afoga em contratempo

Vou na margem da borracha
Da borracha e do minério
Do minério rica história
Rica história desse império

Desse império onde a lenda
Onde a lenda é caso sério

Eu sonhei que tantas águas
Fossem águas sem porém
Eu pensei que tanta terra
Fosse terra de ninguém
Mas no mundo dessas águas 
Toda terra é terra alguém


História luminosa e triste de Cobranorato
Composição: João de Jesus Paes Loureiro e Toinho Alves

Aqui começo cantando
Como o rio-mar que corre
Buscando no mar da lenda
Novas razões de cantar
Vida de Cobranorato
Cuja verdade decorre
De ser não-sendo e
permanecer existindo

O rio enchia e vazava
pororoca, baixa-mar
Cobranorato não sabia
Outro pensar
De ser não-sendo e 
Permanecer existindo

E desde então dessa hora
Todo filho que nascia
De amor que ninguém sabia
Era filho de Honorato
Mentiramente verdade
Que a ira em paz recebia
Nesse estranho gesto humano
De consentir-se no engano

O rio enchia e vazava
pororoca, baixa-mar
Cobranorato não sabia
Outro pensar
Queria corpo de moça 
E nele naufragar

Por que me tiraste moço
Minhas argolas de amor
Com tua lança certeira
Em meu colar de pudor
Que vou dizer a meu pai
À minha mãe que direi
Se aquilo que ora renego
É o mesmo a que me darei

O rio enchia e vazava
pororoca, baixa-mar
Cobranorato não sabia
Outro pensar
O amor é rosto sem face
Que não está onde está

Ferido Norato está
Das coisas más que bebeu
Sob águas e ares poluídos
Um pesadelo ocorreu
E chora as águas e ares
Que ainda viu por salvar
Os rios morrendo de sede
E o ar morrendo sem ar

O rio enchia e vazava
pororoca, baixa-mar
Cobranorato não sabia
Outro pensar
Os rios morrendo de sede
E o ar morrendo sem ar.

         No ano de 1912, observa-se o maior índice de produção da borracha no Brasil. As exportações desse produto chegaram a representar 40% do total do país. A partir daí, a exploração de borracha entra em declínio. Isso se deu graças às precárias condições do regime de trabalho e padrão de vida do trabalhador além do rudimentar sistema de exploração econômica observado na atividade. Não era tomada nenhuma medida de precaução para proteção e conservação dos seringais. Por outro lado, já em 1873 e 1876, foram levadas mudas de seringueiras, tiradas da Amazônia, para jardins botânicos de Londres. Posteriormente, os ingleses transportaram essas seringueiras para o Ceilão e Singapura, dando origem a imensas plantações racionalmente conduzidas e selecionadas. Com essa medida, a borracha produzida no Ceilão e na Malásia desbancou completamente a produção extrativa da América. No ano de 1919, mais de 80% da produção mundial de borracha pertencia ao oriente. Deve-se levar em conta que a produção da borracha em território primitivo como o brasileiro, comparada a essa mesma atividade realizada sob a orientação técnica e financeira da Inglaterra representa uma grande diferença. O Brasil não passava de um mero produtor de matéria-prima. Eram desconhecidas as etapas de financiamento, comércio, manipulação e consumo do produto em nosso solo. Terminava assim um período de apogeu que contribuiu para um incipiente desenvolvimento da região com a menor taxa demográfica do Brasil. O esquecimento a que foi relegada a região amazônica após a década de 1920 só teria fim com a criação da Zona Franca de Manaus, em 1967.

A escrita do texto surgiu da leitura de:

PRADO Júnior, Caio. História econômica do Brasil. 1ª edição de 1945. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979. 22ª ed.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Entre cantos, rabos-de-vaca e chibatas

(por Magno Córdova)

Uma mistura básica no Brasil: música e futebol.
Acrescente a isso um processo empírico de luta, significativo em nossa história.
Tá desenhada a rede de conexões a encontrar sentido e significado.
É que a gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho e aprende que a alegria de quem está apaixonado é como a falsa euforia de um gol anulado.

Reitero minha mestiçagem! Reitero a música popular feita no Brasil como espinha dorsal disso tudo!
E eu não sou Pelé, nem nada. Se muito for, sou um Tostão.

Mais uma vez, a presença de Climério Ferreira.
E, dessa vez, num universo de fazeres outros. Mas ainda pela poesia, claro!

Vou buscar um livro de Climério na estante. Pego um deles, o "Artesanato existencial". É nele que se encontra um poema que me persegue por esses dias e que há tempos não lia. E esse poema tem me perseguido da seguinte forma:

- desde que tomei conhecimento do mesmo, soou como muito simpáticas a citação e a homenagem ao jogador que nele aparece terem sido feitas por Climério, piauiense radicado no Distrito Federal e perambulante por outros recantos;

- a retomada da leitura dos poemas de Climério coincide com a releitura de poemas de outros poetas do período brasiliense/carioca. Uns poetas, outros letristas/poetas, outros somente letristas, complexa diferenciação. Sérgio Natureza é um deles, com quem tive a oportunidade de uma rápida aproximação quando justo saí do DF para residir na cidade de São Sebastião. No Rio, Sérgio atua e habita;

- de Climério a Sérgio é o salto do Nordeste ao sul maravilha - como se dizia  (e ainda se diz? nesses tempos sem tempo e sem espaço?) e, de certa forma, à Minas do jogador do poema. Pois que Sérgio é parceiro de Tunai, irmão de João, que compõe e compôs com Aldir. Da faixa do Parnaíba/Canoa Quebrada à Ilha das Cobras é o mesmo que do Dragão do Mar ao Almirante Negro, ou seja, de Francisco José do Nascimento a João Cândido, representando a parcela exterminada da nossa "Esquadra Branca"; é um salto com passagens de um a outro século, de concepções de Estado, de fisionomia política, de abertura pro mar, de trabalho não escravo, de dignidade de canoeiros e marinheiros, de liberdade no mar.

- Mas, e o jogador?  Ele divide a bola com o universo da Chibata, no segundo e no terceiro lps de João, ouvidos obrigatoriamente no cotidiano de minha infância na cidade de Belo Horizonte,  mesma cidade em que "O craque" atuava e habitava (ou ainda habita, não sei). Os títulos dos discos soavam quase como um grito de gol no Mineirão. Só que do time adversário - aquele que possuía os melhores jogadores de causar uma inveja, inveja silenciosa no menino cruzeirense:

Cerezo... - que, mais ou menos ali, foi  "tocado" por Pepeu no primeiro instrumental pós Novos Baianos, o fantástico e seminal Geração de Som, adquirido às pressas na COTEC da engenharia, com o Mallagutti, assim que lançado. Ouçamos Toninho Cerezo nas mãos de Pepeu: 

(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=v18NcZVaVs8)


- ...também Paulo Izidoro, Marcelo (recentemente treinador do Cruzeiro), Ângelo (que me fez atleticano contra o São Paulo de Chicão e Neca) e...

...Reinaldo - cantado pelo mesmo Tunai, parceiro de Sérgio. Só que aqui junto a Fernando, o Brant:

(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=aKed_vI_hWw) 

Rei
Composição: Tunai e Fernando Brant

Quando a bola vai rolar
Vale verde e Mineirão
Tem um nove no coração

Quando a bola vai rolar
Beira Rio, Maracanã
Já conhecem o seu poder...

Um poder que faz cantar
Um poder que faz dançar
Um poder que faz o povo ir (1)
rir (2)

O poder da multidão
Inventando a paixão
No momento de um gol
Rei, nosso rei
O povo elege o seu poder
Rei, nosso rei
O povo prefere o seu poder.


- O nome dos discos de João Bosco? Caça a raposa e Galos de Briga, cujas canções-título (e todo o repertório) não podiam ser outra coisa: João era atleticano, pensávamos brincando. Raposa e galo aí estão muito bem definidos na cabeça de João. Era o que nos ocorria. 

Pois, falar desses discos sem ouvir as canções que lhes dão título, justo aqueles títulos que soavam imaginariamente com outro sentido, é uma blasfêmia. A tal Caça à raposa (canção das mais belas, marcantes e inesgotáveis - na falta de outro adjetivo que satisfaça)...


(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Z_gu341Jo30)

Caça à raposa
Composição: João Bosco e Aldir Blanc

O olhar dos cães, a mão nas rédeas
E o verde da floresta
Dentes brancos, cães
A trompa ao longe, o riso
Os cães, a mão na testa:
O olhar procura, antecipa
A dor no coração vermelho
Senhoritas, seus anéis, corcéis
E a dor no coração vermelho
O rebenque estala, um leque aponta: foi por lá!...
Um olhar de cão, as mãos são pernas
E o verde da floresta
- Oh, manhã entre manhãs! -
A trompa em cima, os cães
Nenhuma fresta
O olhar se fecha, uma lembrança
Afaga o coração vermelho:
Uma cabeleira sobre o feno
Afoga o coração vermelho
Montarias freiam, dentes brancos: terminou...
Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah, recomeçar, recomeçar
Como canções e epidemias
Ah, recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo
e o fogo

...e o (a) tal Galos de Briga


(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=FfOy4PX9Qj0)


Cristas de incêndio crispadas,
cristas de fogo de espadas,
cristas de luz suicida,
lúcidas de sangue futuro.
Cristas crismadas em rubro;
não rubro rosa assustada,
de rosa estufa, canteiro,
mas rubro vinho maduro,
rubro capa, bandarilha,
rosa atirada ao toureiro.
Não o rubrancor da vergonha,
mas os rubros de ataduras,
o rubro das brigas duras
dos galos de fogo puro,
rubro gengivas de ódio
antes das manchas do muro.


- Mas era "O craque', aquele que colocava o Cruzeiro no mesmo patamar (ou, ao menos, ele mesmo se equiparava com os tantos que o time adversário possuía), que vinha assim por Climério (eis o poema que me perseguia até aqui):

Por onde andará Joãozinho
Que dava o drible da vaca
Até em bumba-meu-boi?
Onde estiver Joãozinho
Dará uma pisa, uma taca
No tempo que já se foi

Pois bem, era no Caça a raposa que se ouvia, todo dia, na minha casa, "O mestre sala dos mares".

- E, no meio do processo, mais uma conexão, no Rio, pra se juntar à essa culinária de mistérios e significados: conhecer de perto, conviver amistoso, com o historiador Marco Morel, autor de um livro sobre tema tão possível de amarrar nesse nosso delírio cotidiano, como um ingrediente desse bolo que mistura bola e tamborim, canhões e almas: o tema mais que impregnado da corrupção no Brasil. Taí, mostro a cara do livro do Marco:


- três irmãs e um irmão (tenho orgulho de ter três irmãs e um irmão - mais velhos que eu - com formação política de esquerda, com os pés fincados na luta dos que menos tem, que me influenciaram) adquiriam livros, antes de eu fazê-lo. Um desses livros piscava pra mim da estante, enquanto ouvia o "Mestre salas...", ora com João, ora com Elis. Era o A Revolta da Chibata, do Edmar Morel, avô de Marco. Li o Edmar apoiado pela escuta de João e do Aldir. Adolescente. 

Aqui, a capa da edição do livro do Edmar que li:


E aqui, texto sobre Edmar e seu livro, em artigo escrito pelo seu neto Marco: 

http://www.vermelho.org.br/noticia/142017-11

Dando sequência à prosa, quando eu trabalhava em uma rádio pública de Belo Horizonte, já adulto e antes de sair em residência para fora do estado de Minas, escrevi sobre o livro. O texto era mais ou menos assim (e este era o fim último desta postagem: tornar público este texto):

A cidade do Rio de Janeiro se inquietou com os estampidos de tiros de canhão vindos do porto naquela noite de 22 de novembro de 1910. Vidraças das edificações do centro e do bairro de Copacabana se estilhaçavam. O então presidente da república, Marechal Hermes da Fonseca, estava sendo recepcionado no Clube da Tijuca quando recebeu a notícia de que a Marinha se revoltara. A princípio, pensou ser um levante chefiado pelo Almirante Alexandrino de Alencar, que deixara o Ministério da Marinha havia oito dias. Ao chegar ao Palácio do Catete, sede do Governo Federal, a estação de rádio do morro da Babilônia já havia captado uma mensagem ameaçadora dos rebeldes: se não fossem eliminados os maus tratos dos oficiais sobre seus comandados nos porões da Marinha, a cidade e também os navios que não se rebelassem seriam bombardeados. Pediam o fim da chibata, o fim dos castigos corporais. Assumiam a mensagem os tripulantes das guarnições ”Minas Gerais”, “São Paulo e “Bahia”. 

A “Esquadra Branca” brasileira era considerada, em 1910, a terceira potência naval do mundo. O “Minas Gerais” e o “São Paulo” eram dois encouraçados de grande porte e o “Bahia”, um cruzador; os três representando as guarnições mais modernas e potentes da esquadra.

Quem chefiou a insurreição foi o marinheiro João Cândido, o primeiro no mundo a comandar uma esquadra. Do seu lado, um grupo de homens decididos, injustiçados, com unidade, chefia e ideal. Do outro lado, um governo indeciso, pagando por injustiças praticadas a várias gerações de marujos. Após quatro dias de ameaças e negociações, Rui Barbosa, com todo o prestígio da sua Campanha Civilista, propõe anistia e o fim do regime de chibatas instaurado no governo Provisório do Marechal Teodoro da Fonseca, em 1890.

Iniciava-se, com a anistia, o verdadeiro horror vivido pelos rebeldes. Após se entregarem, parte deles é encarcerada em uma masmorra na Ilha das Cobras, onde morrem de inanição ou asfixia; outro tanto, enviada para os confins da Amazônia a bordo do navio “Satélite”, onde muitos foram vendidos como escravos ou simplesmente fuzilados. João Cândido, milagrosamente sobreviveu, vindo a falecer apenas em 1969.

(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=KanAmmTUVnE)

O mestre sala dos mares
Composição: João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como navegante negro
Tinha dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto, pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
Dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
E a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

A indicação para leitura sobre o assunto, claro, é o livro “A Revolta da chibata”, de Edmar Morel. A edição que conheço é da Edições Graal, de 1979.

domingo, 27 de dezembro de 2015

O jovem Chico Buarque e os trabalhadores no Brasil dos militares

(por Magno Córdova)

A música “Pedro Pedreiro”, de Chico Buarque de Hollanda surgiu em 1965, um ano após o golpe militar. 


(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=ukyJzG9IePI)

Pedro Pedreiro
Composição: Chico Buarque de Holanda

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando

Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando prá trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol, esperando o trem
Esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval

E a sorte grande do bilhete pela federal todo mês
Esperando, esperando, esperando, esperando o sol
Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem
Esperando a festa, esperando a sorte
E a mulher de Pedro, esperando um filho prá esperar também

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém

Pedro pedreiro tá esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro Norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo 
Espere alguma coisa mais linda que o mundo

Maior do que o mar, mas prá que sonhar se dá
O desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais, sem ficar

Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol, esperando o trem
Esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho prá esperar também

Esperando a festa, esperando a sorte
Esperando a morte, esperando o Norte
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim, nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita do apito de um trem

Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem

Que já vem
Que já vem
Que já vem
Que já vem
Que já vem
Que já vem

“Construção e Deus lhe pague” foram lançadas no mercado fonográfico em 1971. 


(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=olJPFY6wHrM)

Construção/Deus lhe pague
Composição: Chico Buarque de Holanda

Amou daquela vez como se fosse a última 
Beijou sua mulher como se fosse a última 
E cada filho seu como se fosse o único 
E atravessou a rua com seu passo tímido 
Subiu a construção como se fosse máquina 
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas 
Tijolo por tijolo num desenho mágico 
Seus olhos embotados de cimento e lágrima 
Sentou prá descansar como se fosse sábado 
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe 
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago 
Dançou e gargalhou como se ouvisse música 
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado 
E flutuou no ar como se fosse um pássaro 
E se acabou no chão feito um pacote flácido 
E agonizou no meio do passeio público 
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego 

Amou daquela vez como se fosse o único 
Beijou sua mulher como se fosse a única 
E cada filho seu como se fosse o pródigo 
E atravessou a rua com seu passo bêbado 
Subiu a construção como se fosse sólido 
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas 
Tijolo por tijolo num desenho lógico 
Seus olhos embotados de cimento e tráfego 
Sentou prá descansar como se fosse um príncipe 
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo 
Bebeu e soluçou como se fosse máquina 
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo 
E tropeçou no céu como se ouvisse música 
E flutuou no ar como se fosse sábado 
E se acabou no chão feito um pacote tímido 
E agonizou no meio do passeio náufrago 
Morreu na contramão atrapalhando o público 

Amou daquela vez como se fosse máquina 
Beijou sua mulher como se fosse lógico 
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas 
Tijolo por tijolo num desenho mágico 
Sentou prá descansar como se fosse um pássaro 
E flutuou no ar como se fosse um príncipe 
E se acabou no chão feito um pacote bêbado 
Morreu na contramão atrapalhando o sábado 

Por esse pão prá comer, por esse chão prá dormir 
A certidão prá nascer e a concessão prá sorrir 
Por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague 

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir 
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir 
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair, Deus lhe pague 

Pela mulher carpideira prá nos louvar e cuspir 
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir 
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir, Deus lhe pague

Quando ouvimos a música do Chico temos uma dimensão exata da precária situação da classe trabalhadora urbana brasileira naquele período de ideologia do “milagre” econômico, sustentado por “slogans” como “esse é um país que vai prá frente”. 

O auge da ditadura militar apontava para o fim do “milagre”, ao dilapidar a força de trabalho com o favorecimento do grande capital e a manutenção, durante toda a década de 1970, de níveis ínfimos de salário entre os trabalhadores. Com baixo nível salarial, a alimentação de operários era precária. A extenuação da classe trabalhadora chegou a ameaçar as demais classes sociais, através de epidemias. Em 1974, um surto de meningite entre as camadas populares teve sua divulgação censurada até atingir democraticamente outros setores da sociedade. 

Retomando a obra de Chico, em determinado verso da canção "Deus lhe pague" lemos: “pelos andaimes pingentes que agente tem que cair...”. A média de acidentes de trabalho por dia útil, registrados no Brasil durante o período que vai de 1971 a 1977, era de cerca de 5500 acidentes por dia. No ano de 1976 a média por dia atingiu 6355 trabalhadores vitimados por acidentes de trabalho. 

Naquele ano, registrou-se a esperança de vida do brasileiro ao nascer, a partir da sua faixa salarial. O trabalhador que recebia menos de um salário mínimo por mês tinha 14 anos a menos, de esperança de vida, comparando-se com aquele que recebia acima de cinco salários mínimos.


O livro “História do Brasil recente (1964-1980)”, de Sonia Regina de Mendonça e Virgínia Maria Fontes, pela editora Ática, vai como sugestão de uma leitura inicial.

A cidade de BH até os anos 70

(por Magno Córdova)



(Imagem recente da Praça 7, no centro de Belo Horizonte, considerada o coração da cidade. Na praça se dão os cruzamentos das avenidas Afonso Pena e Amazonas e das ruas Rio de Janeiro e Carijós). 


A zona urbana de Belo Horizonte se compõe de um traçado ortogonal de ruas e avenidas separadas da zona suburbana pela antiga avenida 17 de Dezembro, atual Contorno. O modelo inicialmente concebido pelos construtores da cidade incluía uma terceira área que seria a zona rural, onde se localizavam as colônias agrícolas e que se constituiria em um “cinturão verde”. A ocupação dessas áreas não se deu de acordo com o previsto pelos idealizadores do modelo habitacional. A zona urbana teve boa parte de seus terrenos postos em leilão para que a seleção de proprietários se desse por um critério de renda. O que se verificou foi que, já no ano de 1902, viviam cerca de duas mil pessoas em favelas no interior da área da Contorno, principalmente nas regiões do entorno da avenida Amazonas, antiga Barroca, atual Barro Preto, local então destinado para o Jardim Zoológico municipal. Em algumas dessas áreas apareceram Vilas Operárias, locais habitados por aqueles que comprovavam bom comportamento e educação sanitária. A previsão de que a ocupação se daria do centro para as regiões periféricas foi subvertida, conforme atestam os dados do censo realizado em 1912: dos 39 mil habitantes moradores da cidade naquele ano, quase 70% residiam nas áreas suburbanas e na zona rural. Ou seja, cerca de 27 mil pessoas já haviam se estabelecido fora do espaço da avenida do Contorno. A área interna a essa avenida foi projetada para receber uma população de 30 mil pessoas e contava com apenas 12 mil habitantes naquela época. Nas décadas de 1930 e 1940, a cidade conheceu um período de extraordinário desenvolvimento urbano, em especial fora da Avenida do Contorno, que iria se refletir nas décadas posteriores. Em trinta anos, a população da cidade saltou dos 211 mil habitantes de 1940, para 1 milhão 255 mil habitantes em 1970. Mais da metade dessa população não era nascida na cidade, sendo grande parte dela originária das áreas rurais de todo o estado de Minas. 


(Em 1978, o grupo de músicos cuja atuação estava diretamente associada à Minas Gerais prestou homenagem à capital do estado com a música "Ruas da cidade", de autoria dos irmão Márcio e Lô Borges. A canção foi interpretada por Lô e gravada no disco duplo Clube da Esquina 2, capitaneado por Milton Nascimento. Era a consolidação da experiência daquele "movimento" musical que, pela segunda vez, dava título a um disco com o nome cunhado em torno da musicalidade mineira. Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=QGcHVDJhVH4)

Ruas da cidade

Composição: Lô Borges e Márcio Borges

Guiacurus Caetés Goitacazes
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
Guajajaras Tamoios Tapuias
Todos Timbiras Tupis
Todos no chão
A parede das ruas
Não devolveu
Os abismos que se rolou
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial

Passa bonde passa boiada
Passa trator, avião
Ruas e reis
Guajajaras Tamoios Tapuias
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
A cidade plantou no coração
Tantos nomes de quem morreu
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial


Uma boa leitura sobre a cidade de BH é o livro “Belo Horizonte: espaços e tempos em construção”, organizado por Roberto Luis de Melo Monte-Mór. Publicação do CEDEPLAR – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional e Prefeitura de Belo Horizonte. Destaque para o texto “Habitação e produção do espaço em Belo Horizonte”, de Heloísa Soares de Moura. 

Nelson Cavaquinho

(por Magno Córdova)


Nelson Cavaquinho não se notabilizou tocando o instrumento que lhe deu nome. Acompanhava-se tocando o violão de maneira muito peculiar: beliscava as cordas utilizando apenas o polegar e o indicador da mão direita. 

Nelson Antônio da Silva nasceu no bairro carioca de São Cristóvão, cidade do Rio de Janeiro, em 1910. Para o poeta Manuel Bandeira é de Nelson - em parceria com Guilherme de Brito e Alcides Caminha - um dos versos mais bonitos da música popular brasileira, que diz: “Tire o seu sorriso do caminho/que eu quero passar com a minha dor”. A música que leva esses versos é “A flor e o espinho”. Foi composta no ano de 1957 pelo sambista e seu parceiro mais constante: Guilherme de Brito. 


 
(Vídeo extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=qY7g_uSgysE)

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma a sua
O sol não pode viver perto da lua
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma a sua
O sol não pode viver perto da lua
É no espelho que eu vejo a minha magoa
A minha dor e os meus olhos rasos d'água
Eu na sua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em seu amor

Eu só errei quando juntei minh'alma a sua
O sol não pode viver perto da lua

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Que eu quero passar com a minha dor

Antes de iniciar a parceria com Guilherme em 1955, Nelson já havia passado pela polícia militar do Rio, na condição de membro do setor de cavalaria, e já havia se casado uma vez. Sua esposa chamava-se Alice, de quem se separou por se negar a deixar a vida boêmia. Inclusive, é da época que Nelson esteve na Polícia Militar uma das lendas que se conta a seu respeito: a ronda pelas ruas da cidade era feita com a montaria. O boêmio Nelson escolhia sempre os bares localizados na praça Tiradentes onde se encontravam os seus amigos, para fazer sua ronda. Chegando ao local, desmontava para tocar e beber até o dia seguinte. Dizem que bastava Nelson ser posto em condição de total embriaguez sobre seu cavalo, para o fiel companheiro o encaminhar, em trote sereno, para as dependências do quartel.

Em 1939, Nelson se casou pela segunda vez, com Neli, com quem teve quatro filhos. Foi dessa época seu encontro e aproximação com Zé da Zilda, Carlos Cachaça e Cartola. Só em 1952 é que o sambista se mudou para o morro de Mangueira. Nelson fez parte de uma geração de músicos que, a partir da década de 1960, saiu do anonimato para ter sua obra cantada por grandes intérpretes. 


(acima e abaixo, Nelson reunido a Candeia, Elton Medeiros e Guilherme de Brito, no contexto da gravação do disco 4 grandes do samba, de 1977.). 


Em fins da década de 1960, o compositor registrou um depoimento que se encontra incluído no acervo de música popular do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Naquela mesma época, foi lançado um filme curta metragem com direção de Leon Hirzman sob o título “Nelson Cavaquinho”.

Nelson faleceu em 1986, de enfisema pulmonar.

(documentário Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman - Extraído do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=6VTH_T00gnY )

Para saber mais sobre o compositor: “Nelson cavaquinho - Enxugue os olhos e me dê um abraço”, de Flávio Moreira da Costa. Publicado pela Relume Dumará, no ano de 2000.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Flying Banana: música de romeiros e caminhoneiros

(por Magno Córdova)


Quem primeiro me chamou atenção para a existência do grupo Flying Banana foi o compositor e poeta Climério Ferreira, no ano de 2004. Eu morava em Brasília e organizava informações sobre a trajetória musical de Climério, tomada como uma das matrizes documentais de minha pequisa acadêmica. Assim, minha investigação me conduziu à cidade de São José dos Campos, São Paulo, de meados da década de 1970, onde ele residiu.

Climério nasceu em Angical, no estado do Piauí, e se fixou em Brasília no início da década de 60. No decênio seguinte, foi parar em São José, onde morou numa república de estudantes.


Quando mencionou o Flying Banana, Climério informou-me que ele próprio havia participado como co-autor de uma das canções presentes no repertório do LP, mostrando-a a mim: 





Mantenha distância (Chevrolet)
Composição: Antonio Celso Duarte (Bê) e Climério Ferreira

Se eu tiver um caminhão 
eu quero chevrolet, 
pra pisar na buraqueira 
e pra poder roubar mulher
Mas se eu tiver um caminhão 
eu quero chevrolet, 
pra pisar na buraqueira 
e pra poder roubar mulher

Carroceria eu boto 20 anos, 
meus amigos, minha vida, 
meus trapos, meus planos
No pára-brisas Brigite Bardot, 
a Marilyn Monroe 
e a morena flor do sertão

Antes que o asfalto sufoque o baião, 
eu quero ver a paisagem 
passando faceira, 
cheirando a rabeira 
do meu caminhão
eu quero ver a paisagem 
passando faceira, 
cheirando a rabeira 
do meu caminhão

O pára-choque do meu caminhão, 
escrevo a vida como a vida é
Não esquecendo que no fim das contas 
poeira de caminhão é vitamina de chofer
Não esquecendo que no fim das contas 
poeira de caminhão é vitamina de chofer

Na primeira audição, surpreendi-me com a sonoridade e com o repertório do disco. Passei a buscar mais informações sobre os seus componentes. Encontrei referências, inclusive, em outras fontes por mim recolhidas pra referida pesquisa a que me dedicava:

"(...) Climério foi residir em São José dos Campos, São Paulo, em pós-graduação universitária, no INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Nossos contatos foram mais freqüentes. Ele foi diversas vezes à minha casa em São Paulo e convidava para também ir a São José dos Campos. No Bar do Pedro, entre músicas, violões e cervejas, a ideia de nossa parceria foi sendo construída. Tinha a Frô do Avaré, Flying Banana (Carlão, Bê e Passoca), os shows que fiz em São José..."

Neste depoimento do cantor e compositor Ednardo aparecem os nomes de pessoas com as quais ele e Climério conviveram quando se consolidou a parceria entre os dois:  Frô do Avaré é a forma carinhosa como os amigos tratam Evelise Fernandes; Passoca é o apelido de Marco Antônio Vilalba; Bê é o apelido de Antônio Celso Duarte; e Carlão é Carlos Alberto de Souza. Eram todos estudantes de arquitetura naquela época. Dedicavam-se à música paralelamente aos estudos universitários. Frô do Avaré, Carlão, Bê e Passoca foram colegas de república de Climério na cidade do interior paulista:

Climério gostou muito do que os companheiros de república tocavam e compunham e os convidou para uma apresentação em Brasília.  Havia, à época, um projeto de extensão desenvolvido na UnB (Universidade de Brasília) que tinha por objetivo levar novos talentos musicais aos estudantes e à comunidade brasiliense em geral. O decano de extensão da universidade era Marco Antônio Rodrigues Dias, amigo de Climério, que não vacilou em incluir a sugestão na programação do calendário cultural da universidade.

Foi durante os preparativos para esta viagem a Brasília que os amigos decidiram que tocariam e cantariam em conjunto, todos reunidos no palco. Daí surgiu o Flying Banana. Frô do Avaré participou da apresentação em Brasília, mas não acompanhou o grupo quando o disco foi gravado, em 1977.

Após essa experiência, Passoca se dedicou ao estudo e pesquisa mais aprofundados da viola caipira. Já conhecia seu trabalho musical a partir da participação que fez em um disco emblemático do que se convencionou chamar “vanguarda paulistana (ou paulista)”: o disco Outros sons, de Eliete Negreiros. Cabe aqui um parêntese sobre esse disco.

Lançado em 1982, pelo selo Lira Paulistana, o que nele chama atenção é o fato da música de Passoca, “Sonora Garoa”, pertencer a uma tradição rural, caipira, com o toque de viola próprio do que seria legítimo chamarmos de “musica regional de São Paulo”, do interior do estado ou, ainda, do Brasil interior, campestre (*). Daí o aparente contra-senso de sua inclusão em um lp norteado pelas experiências dodecafônicas de Arrigo Barnabé e mesmo por um lado mais pop, urbano, de, por exemplo, Otávio Fialho, outro dos arranjadores aí presentes. Pois, “Sonora garoa” soa exatamente como o contra-ponto da modernidade musical paulistana daquele momento  e daquele disco. A canção de Passoca nos indica a permanência da sonoridade e do sentimento rurais no complexo contexto urbano da maior cidade do país, entre os primeiros automóveis do dia, sirenes de fábricas convocando para o trabalho, radinhos de pilha gritando com voz metálica as canções de um amanhecer paulistano. 




Sonora garoa
Composição: Marco Antônio Vilalba - Passoca

Sonoro sereno
serena garoa
pela madrugada
não faço nada que me condene
a sirene toca
bem de manhãzinha
quebrando o silêncio
sonorizando a madrugada

Passa o automóvel
na porta da fábrica
o radinho grita
com voz metálica
uma canção

Sonora garoa
sereno de prata
sereno de lata
reflete o sol

bem no caminhão

Voltando aos amigos da república de São José, dos componentes do Flying Banana, Carlão tocou com Elis Regina naquela segunda metade de década e acompanhou, dentre outros, o compositor Renato Teixeira (junto com Renato e outros músicos formou o Grupo Água). 

Para tentarmos dar conta do contexto de aproximação desses artistas, lembremos que Elis havia impulsionado a trajetória musical do cearense Belchior em um disco lançado em 1976, o Falso Brilhante. No LP do ano seguinte, ela gravou uma música de Renato Teixeira que acabou por se transformar em um clássico da música caipira, a canção “Romaria” - isso sem levar em conta as "leituras críticas" que esta canção recebeu, a partir de avaliações literárias "concretistas" que o texto da canção sugere, colocando-a no mesmo caldeirão poético dos textos das canções tropicalistas, por exemplo. Na gravação de “Romaria”, Carlão foi um dos instrumentistas que acompanhou Elis, na viola de 12 cordas e nos vocais.

Além do fato de terem sido lançados no mesmo ano e de contarem com Carlão como intérprete/instrumentista, esse lp de Elis e o do Flying Banana possuem o dado comum da aproximação temática entre “Romaria” e “Pirapora”, esta última uma composição de Antônio Celso Duarte, o Bê,  gravada no álbum do grupo. Ambas possuem o estilo e a atmosfera comuns, tendo por pano de fundo a religiosidade inscrita no território da cidade paulista de Pirapora do Bom Jesus, situada a pouco mais de 50 Km da capital:



Romaria
Composição: Renato Teixeira

É de sonho e de pó, o destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó, de gibeira o jiló,
Dessa vida cumprida a sol

Sou caipira, Pirapora Nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida

O meu pai foi peão, minha mãe solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
Em busca de aventuras
Descasei, joguei, investi, desisti
Se há sorte eu não sei, nunca vi
Me disseram porém que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar, só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar

(no vídeo abaixo, a música "Pirapora" encontra-se aproximadamente no tempo 25:53)


Pirapora
Composição: Antônio Celso Duarte (Bê)

Eu vou seguir
Poeira, mato, asfalto afora
Barba comprida
Cabelo grande que nem de muié
Mariazinha diz que me namora
Eu vou cumprir minha promessa
Eu vou a Pirapora a pé
Meu Bom Jesus de Pirapora
Agüenta aí a sua cruz
Eu vou chegando sem demora
Eu vou e volto umas três vez
Juro por Deus Nossa Senhora
Quando eu voltar
De Pirapora a pé
Eu vou fazer uma casinha 
De sapé
Eu vou levar Mariazinha
Eu vou tocar minha viola 
Vou deitar a minha rede
No meu pé de carambola 
Eu vou a Pirapora a pé

É inevitável a associação entre as duas canções, até mesmo antes de sabermos qualquer informação "genealógica" que envolve seus atores e registros. Nesse sentido é que poderíamos falar de um “espírito do tempo” sendo reproduzido, gerido, interpretado, representado através dessas canções.

Fechando o repertório musical deste comentário, deve-se reconhecer o papel exercido pela TV na disseminação de um quadro cultural e temático muito bem estruturado em suas determinações e projeções sociais. Nesse sentido, torna-se legítimo reconvocar a figura de Renato Teixeira, agora assumindo o protagonismo do chofer de caminhão. Personificada pelos personagens Pedro e Bino (Antônio Fagundes e Stênio Garcia), do seriado Carga Pesada, a canção "Frete" conduziu a trilha desse programa Brasil adentro/afora, "religiosamente" assistido por zilhões daqueles que se transformaram em figuras coletivas emblemáticas daquela geração: os telespectadores.   


Frete
Composição: Renato Teixeira

Eu conheço cada palmo desse chão
é só me mostrar qual é a direção
Quantas idas e vindas meu deus quantas voltas
viajar é preciso é preciso
Com a carroceria sobre as costas
vou fazendo frete cortando o estradão
Eu conheço todos os sotaques
desse povo todas as paisagens
Dessa terra todas as cidades
das mulheres todas as vontades
Eu conheço as minhas liberdades
pois a vida não me cobra o frete
Por onde eu passei deixei saudades
a poeira é minha vitamina
Nunca misturei mulher com parafuso
mas não nego a elas meus apertos
Coisas do destino e do meu jeito
sou irmão de estrada e acho muito bom
Eu conheço todos os sotaques
desse povo todas as paisagens
Dessa terra todas as cidades
das mulheres todas as vontades
Eu conheço as minhas liberdades
pois a vida não me cobra o frete
Mas quando eu me lembro lá de casa
a mulher e os filhos esperando
Sinto que me morde a boca da saudade
e a lembrança me agarra e profana
o meu tino forte de homem
e é quando a estrada me acode
Eu conheço todos os sotaques
desse povo todas as paisagens
Dessa terra todas as cidades
das mulheres todas as vontades
Eu conheço as minhas liberdades
pois a vida não me cobra o frete

Por fim, digo que foi o impacto da escuta de trabalhos como o do Flying Banana, tão representativo do momento foco do meu objeto de estudo, um elemento de impulso. Algo que não foi - nem será - incomum em qualquer trajetória de pesquisa, tantas foram e são as experiências de escuta que nos tomam pelo pé, pela mão, pelo peito. Todas elas acionando estruturas mentais e corporais guiadas pela escuta. 

Como mote futuro de uma outra consideração, fica o referencial de mais uma experiência musical adquirida nesse contexto: da Banda Santarén, mais ou menos contemporânea do Flying Banana. Que será a carga dum próximo embarque.

(*) "Sonora garoa", numa outra frente significativa, que reforça a teia de relações aqui ligeiramente esboçada, entrou na trilha sonora de um filme necessário da cinematografia brasileira da época, cuja abordagem temática ilustra o universo aqui abordado: A marvada carne é um filme dirigido por André Klotzel. Vale muito ver.  

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

As entranhas da mpb dos anos setenta - entrevista com Magno Córdova



A entrevista a seguir foi realizada pelo jornalista potiguar Roberto Homem e publicada no Jornal Zona Sul, de Natal, no ano de 2007, em sua versão impressa e também em formato eletrônico. Roberto a disponibilizou em seu blog, Sem Leriado (cf. http://zonasulnatal.blogspot.com.br/search?q=c%C3%B3rdova) e foi de lá que a recolhi para trazer ao Rabiscos de Ouvido. Mantive o mais fiel possível a edição da entrevista conforme aparece no Sem Leriado. E me permiti editar imagens com as capas de alguns dos discos referenciados por mim e/ou que tiveram relevância para a configuração do objeto da pesquisa que então eu desenvolviaO objetivo, como se pode notar também por diversas outras postagens incluídas aqui no blog, é reunir o material tornado público durante meu percurso de mestrado na UnB, organizando assim uma espécie de acervo daquele trabalho e seus desdobamentos.



Como o próprio Roberto anuncia na abertura da entrevista adiante, fomos apresentados pelo compositor Clodo Ferreira. Descobrimos, os três, que éramos "vizinhos" de final de Asa Norte, no Plano Piloto. Montamos, espontaneamente, uma espécie de QG musical, onde reuníamos amigos pra bate-papos e audições. Desde os nossos primeiros encontros já saiu amizade forte, que permeou todo o período brasiliense. Amizade marcada por encontros da melhor qualidade regados, claro, por longas conversas e muita escuta de música, sempre muita música e a afirmação de afinidades artísticas. Roberto foi, pois, mais um desses colaboradores impressionantes que tive a oportunidade de encontrar e "adquirir" em Brasília. Foi ele quem me colocou próximo à Terezinha de Jesus, que se encontrava no Rio Grande do Norte. Daí pra diante, portas e portas se abriram também nessa frente.

Vejamos, então, como foi a entrevista que concedi ao jornalista Roberto Homem.




Conheci Magno por intermédio de Clodo Ferreira, há alguns anos. Vindo de Minas, ele estava recolhendo material para sua pesquisa de mestrado, posteriormente defendida na Universidade de Brasília (UnB). O trabalho acadêmico, “Rompendo as entranhas do chão”, traz como tema central a importância para a música brasileira dos anos 70 do encontro ocorrido entre cearenses e piauienses. Esse também é o mote da entrevista de final de ano do Zona Sul. Boa leitura, feliz Natal e um ótimo 2008 para todos! (Roberto Homem)

ZONA SUL – Quem é Magno Córdova?
MAGNO – Magno Córdova nasceu em uma cidade chamada Rubim, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, em 1965. Ficou lá durante sete anos e, em 1972, chegou à capital mineira, Belo Horizonte, com mãe e irmãos. Lá viveu até os 36 anos de idade, quando veio para Brasília.

ZONA SUL – Magno Córdova é o seu nome completo?
MAGNO – Não. É Magno Cirqueira Córdova. Minha mãe, Cirqueira, é baiana da região de Poções e Jequié, por ali. Meu pai é da cidade de Jequitinhonha, próximo também da Bahia, no nordeste de Minas. Meus pais se conheceram em Minas. Rubim é próximo de Jequitinhonha.



ZONA SUL – Seu pai ainda está vivo?
MAGNO – Não. Estive com ele um ano antes de sua morte. Não morávamos na mesma casa. Meu pai foi uma pessoa muito presente nos primeiros anos que vivi em Jequitinhonha. Nas férias escolares eu sempre ia a Jequitinhonha. Depois de adulto, fui outras vezes, embora bem poucas. Fiquei quase dez anos sem ver meu pai. Resolvi vê-lo em 2000. No ano seguinte ele faleceu.

ZONA SUL – A paixão pela música já existia em Rubim ou você só a adquiriu após ir morar em Belo Horizonte?
MAGNO – Apesar de a minha família não ser de músicos, Rubim era uma cidade muito musical. Apesar de estar a 700 km da capital mineira, e de o acesso, nas décadas de 60 e 70, ter sido difícil, algumas pessoas, entre elas a minha mãe, tinham condições de viajar até a capital ou a cidades do pólo para adquirir discos. Dentro da minha casa, por ser uma família muito vasta, a gente ouvia vários gêneros musicais. Incluindo a Jovem Guarda, o Tropicalismo, Nat King Cole, Marta Mendonça e Ângela Maria. Sou o mais novo de uma família de dez filhos. Acabei bebendo um pouco dos meus nove irmãos, que até então moravam em Rubim, com exceção da irmã mais velha, que saiu muito cedo. As pessoas ouviam música até na praça. O cotidiano era banhado por trilhas no ar da cidade. Como até 1972 a televisão ainda não existia em Rubim, o rádio era um instrumento muito importante, era o grande barato da turma.

ZONA SUL – Além destes já citados, o que mais se ouvia na sua casa?
MAGNO – Minha mãe era muito atenta ao fato de seus filhos jovens demonstrarem necessidade de conhecer um pouco de música. Lembro do primeiro disco do Caetano, o que tem Tropicália, chegar a minha casa pelas mãos da minha mãe. Tenho fotos, com cinco anos de idade, ao lado de uma radiola, com o disco do Chico, A Banda. Apesar de não serem ainda os protagonistas da pesquisa que eu viria a fazer, com certeza os tropicalistas e o Chico faziam parte do ambiente da minha casa. Até então, eu não fazia qualquer tipo de audição crítica. Era apenas prazer. Gil e Bethânia também foram muito presentes nessa época. Também lembro do disco da Gal cantando Cultura e Civilização, Tuareg e Meu nome é Gal. Tinha uma capa meio psicodélica, maluquíssima. Lembro de meus irmãos mais velhos ouvirem alto demais. Isso tudo ainda no período Jequitinhonense. Foi uma espécie de primórdio de minha relação com a música.



ZONA SUL – Em qual circunstância você passou a ouvir a música específica de sua pesquisa?
MAGNO – Curiosamente foi nos meus retornos a Rubim. Acredito que até 19 ou 20 anos de idade, eu ia Rubim pelo menos duas vezes ao ano, no período das férias escolares. Ia ver meu pai e meus amigos. Em Rubim pude ouvir muita música que eu não escutava na capital. O ambiente onde eu transitava em Belo Horizonte não ouvia exatamente as músicas que eu escutava no Vale do Jequitinhonha. Por exemplo, Ednardo foi uma coisa que me chamou muita atenção no Vale do Jequitinhonha. Ele já havia se destacado com Pavão Mysteriozo quando conheci o disco O Azul e o Encarnado, no Vale. Fagner, também. Orós e Raimundo Fagner eu ouvi com muita freqüência, no final da década de 70, já adolescente, na casa de amigos da mesma idade que tocavam violão. O disco ...Das barrancas do Rio Gavião eu ouvi de cabo a rabo, atentamente. Apaixonei-me por ele no Vale do Jequitinhonha.

ZONA SUL – Como você explica o fato de ter conhecido o som desses nordestinos no Vale do Jequitinhonha e não em Belo Horizonte, a capital do estado?
MAGNO – Se pensássemos muito rapidamente, chegaríamos à conclusão que a capital seria o lugar onde possivelmente ouviríamos essas canções. Mas eu participava, em BH, de um segmento social diferenciado do que eu convivia na cidade de Rubim. Acho que Rubim, pela própria posição geográfica, pela proximidade com o Nordeste, tinha um acesso mais rápido. As pessoas lá se identificavam com mais facilidade com as músicas, pela própria realidade retratada nas canções, pelo linguajar, pela imagética e por tudo o que essas canções possivelmente retratavam. Imagino que os adolescentes de Belo Horizonte talvez estivessem menos preocupados com aquela realidade ou não se sentissem tocados por aqueles temas retratados nas canções.

ZONA SUL – Como se deu sua troca de Belo Horizonte por Brasília?
MAGNO – Eu me casei com uma pessoa que teve muita importância nesse processo. Ela recebeu um convite para desenvolver um trabalho no Ministério da Educação, em Brasília. Trabalhávamos em Belo Horizonte, nosso filho tinha nascido. Viemos de imediato, não foi nada planejado. Para quem planejava morar pouco tempo aqui, já viramos quase candangos.

ZONA SUL – Quer dizer que sua pesquisa não interferiu na troca de endereço.
MAGNO – Minha pesquisa já havia sido mais ou menos esboçada na Universidade Federal de Minas Gerais, onde me formei, em História. Depois de uns dois ou três anos graduado, retomei meu contato, no Departamento de História, com uma pessoa de quem gosto muito, a professora Regina Horta. Ela havia dito que gostaria de dialogar comigo quando eu resolvesse fazer alguma pesquisa. Eu já havia esboçado um projetinho. Levei para essa professora e, no momento em que eu pensava em desenvolver o trabalho lá, minha mulher recebeu o convite. No início fiquei triste, achei que em Brasília - sem contatos ou referências nas escolas e universidades - a pesquisa ficaria relegada a um plano secundário. Para minha surpresa, logo que cheguei fui buscar informações sobre os departamentos de História e encontrei um terreno bacana para desenvolver o projeto.



ZONA SUL – O tema já havia sido definido em Minas? Pelo que apreendi do seu trabalho, Brasília teve uma importância grande na ligação dos piauienses com os cearenses.
MAGNO – É verdade. Aí é que entra o grande barato da coisa. Uma pesquisa, particularmente na área de história, tem trâmites os mais surpreendentes possíveis. Ao montar o esboço da pesquisa, a questão do Nordeste já havia sido tematizada. Mas tudo era muito vasto, amplo. Eu ainda não tinha feito recortes para discutir uma música nordestina situada exatamente na década de 70. Eu tinha o espaço, mas não o tempo. Quando levei para Regina Horta, eu queria, a princípio bem ingenuamente, discutir questões relativas à tradição e vanguarda dentro da música nordestina. O que eu achava que seria engavetado, encontrou em Brasília um terreno muito propício. Vim sem nunca ter pisado na cidade, mas me descobri diante de um território que me oferecia muito mais elementos para poder discutir questões relativas ao Nordeste. É da própria conformação da cidade. Curiosamente, me deparei com alguns dos possíveis protagonistas daquilo que eu imaginava, em Belo Horizonte, e não sabia que moravam aqui. Meu projeto levado à UnB era uma coisa megalomaníaca, de tão grandioso.

ZONA SUL – Era uma enciclopédia...
MAGNO – Era. Mas toda pesquisa nasce assim, a gente começa sem ter muita clareza do objeto. Ele vai se construindo à medida que a pesquisa se desenvolve. Brasília, de certa forma, me ajudou a fazer esse recorte espaço temporal do meu objeto de pesquisa. Aqui eu tive contatos e notícias daquilo que eu gostaria de trabalhar lá em Belo Horizonte, mas que estava diluído dentro de um universo muito mais vasto. Brasília foi o canal, porque ela participa desse processo, de certa forma. Descobri que Brasília havia se tornado um pólo para artistas piauienses e cearenses. De certa maneira, a minha experiência em Brasília acabou determinando um pouco o caminho que eu deveria seguir na minha pesquisa de mestrado.

ZONA SUL – Fale um pouco sobre o seu trabalho.
MAGNO – Foi uma dissertação de mestrado defendida em uma área de pesquisa chamada História Cultural, que existe na Universidade de Brasília. Levou o título de Rompendo as entranhas do chão. Tem um subtítulo através do qual situo um pouco mais o objeto: Cidade e Identidade de migrantes do Ceará e do Piauí na música popular dos anos 70. O título principal, Rompendo as entranhas do chão, foi tomado de empréstimo de um verso de uma canção de Ednardo, Pastora do tempo. Achei que era pertinente com todas as reflexões que eu fiz no meu trabalho, relativas à identidade, à representações de cidades que esses migrantes retrataram em suas. Peguei a experiência do pessoal do Ceará e, aqui em Brasília, tomei conhecimento que não eram todos cearenses. Haviam piauienses envolvidos. Refiro-me particularmente aos irmãos Ferreira: Clodo, Climério e Clésio. Com essa informação, pude verificar e aprofundar um pouco mais o que havia de genuinamente cearense no movimento que ficou conhecido como pessoal do Ceará, que carrega essa nomenclatura referencial àquele estado. Discuti no trabalho também como isso funcionou naquele ambiente político extremamente complexo, que foi o Brasil da década de 70, pós AI-5 e pós-tropicalista. Este é um universo bastante complexo e ao mesmo tempo ainda pouco situado dentro da história da música popular brasileira. O fundamental foi abordar a importância que esse grupo de artistas teve naquele período.

ZONA SUL – Você trabalhou quanto tempo até concluir esse trabalho?
MAGNO – Institucionalmente, fiquei dois anos e meio envolvido na pesquisa.



ZONA SUL – Foram quantos entrevistados?
MAGNO – Entrevistados foram muitos. Izaíra Silvino, musicista de Fortaleza, foi uma delas. Ela foi a primeira intérprete de Raimundo Fagner, em 1969, em um festival ocorrido em Fortaleza, chamado Aqui no canto. Ela defendeu "Luzia do Algodão". A música chegou a ser gravada por uma gravadora local, mas esse disco é raríssimo. Ela foi professora de Fagner, se tornou amiga. Toca violino, cavaquinho... Ela foi uma das pessoas que me forneceram relatos a respeito desse movimento, antes dele se configurar em Brasília. Brasília acabou se tornando o foco. Até então eu não sabia que Fausto Nilo, Fagner, Dedé Evangelista, Augusto Pontes e a musicista Mércia Pinto, entre outros, todos eles vieram do Ceará para morar em Brasília no início dos anos 70. Isso foi antes daquele boom chamado pessoal do Ceará. Mércia Pinto, que também é pianista e professora da UnB, foi uma pessoa muito importante nesse processo. Da mesma forma o foi a escritora Ana Maria Miranda. Eu havia convidado Mércia para participar da minha banca, já que ela é professora do Departamento de Música da UnB. No meio do processo ela acabou se revelando, para além da questão acadêmica, como protagonista do meu objeto. Ela veio de Fortaleza na época em que era casada com Fausto Nilo, quando ele veio dar aula na faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB. Mércia forneceu muitas informações a respeito desse grupo de artistas e professores que vieram para Brasília naquele período. Fausto Nilo, curiosamente, apesar de ter nascido em Fortaleza (*), compôs sua primeira música no período em que morava em Brasília. Mas, o mais importante foi o encontro desse grupo de Fortaleza com os irmãos Clodo, Climério e Clésio. Eles já moravam aqui e já haviam se radicado em Brasília, vindos do Piauí. Até 1965, a família Ferreira havia se estabelecido em Brasília. No início da década de 70 eles se tornaram amigos, quando Clodo era aluno da Comunicação Social na UnB.

ZONA SUL – Você não respondeu quantas entrevistas realizou...
MAGNO – Vou tentar responder. Só com a Mércia, por exemplo, depois que eu soube que ela também havia protagonizado essa história toda, eu fiz umas nove horas de entrevista, juntando tudo. Nove horas registradas, pois tinha coisas que ela pedia para eu desligar o gravador antes de contar. Mas entrevistei Ana Maria Miranda, Fausto Nilo e até Túlio Mourão, um músico que participou desse processo, apesar de nem ser piauiense nem cearense. Clodo e Climério não prestaram depoimentos formais, mas o tempo inteiro deram assistência e conversaram comigo informalmente, até por telefone, e colocaram à minha disposição muito material fonográfico. Foram pessoas fundamentais nesse processo. Ednardo foi outra figura impressionante. Nesse processo de pesquisa a gente sempre fica cauteloso quando está lidando com a memória de pessoas vivas. Existe o receio de saber como elas vão encarar a forma de abordagem da gente. Foi impressionante como Ednardo me recebeu. Foi muito respeitoso e carinhoso. Ele é uma pessoa muito importante. Conversei com muita gente, inclusive com as potiguares Terezinha de Jesus e com a sua irmã Odhaires.

ZONA SUL – Terezinha de Jesus entrou no seu trabalho?
MAGNO – Não. Conversei com ela antes de focalizar a pesquisa nos cearenses e piauienses. Mas ela, junto com a Cátia de França, foram fundamentais para eu me motivar a desenvolver o trabalho. Eu não sabia que Terezinha tinha retornado para Natal. Ela claramente estava envolvida no universo musical com o qual eu queria trabalhar. Na seqüência, percebi que a pesquisa tinha tomado outros rumos, mas a Terezinha é uma artista que tem um papel importantíssimo nesse processo. Além de tudo, ela foi uma das que registraram músicas pelo selo Epic, que era a gravadora a qual Fagner estava envolvido, no final da década de 70. A princípio eu poderia abordar o trabalho de todo esse grupo de artistas, mas infelizmente a pesquisa acadêmica - por questões de limitações temporais e de prazos – exige que o objeto seja enxugado. Mas, voltando ao assunto, também entrevistei o Ródger Rogério, a Téti, a Gilda Cabral - que é irmã da Tânia Araújo, compositora importante nesse processo, parceira de Ednardo. Foram várias pessoas envolvidas, cada uma com uma trajetória bem diferenciada. Isso permitiu que eu pudesse trabalhar com perspectivas as mais diversas, do ponto de vista do letrista, do músico e da valorização. Infelizmente uma pesquisa de mestrado não permite um aprofundamento maior, mas ela aponta uma possibilidade de pesquisas que porventura virão e que podem enfatizar uma ou outra vertente destes trabalhos que por mim foram abordados. Isso num doutorado ficaria mais claro.




ZONA SUL – Vamos voltar à nossa questão matemática: quantas músicas você escutou?
MAGNO – Não tenho a menor idéia. Mesmo se eu fosse responder a partir do momento que eu decidi pela pesquisa, quantas músicas eu ouvi, seriam muitas. Vou fazer uma conta por alto. Algumas eu conhecia desde a adolescência, então resolvi ouvir de novo, para ver como as interpretaria hoje. Por outro lado, muito material me chegou às mãos sem eu conhecer. O grande barato da pesquisa é que você percebe que sabe muito pouco sobre o assunto. Mas, digamos que somente de Clodo, Climério e Clésio, fazendo uma matemática rápida, dos seis discos que eles gravaram na década de 70, ouvi 60 canções. Não estou cantando os outros artistas que gravaram músicas deles. Fagner e Ednardo gravaram muito mais. Na minha pesquisa não inclui Belchior. Ele apenas entrou na minha pesquisa para sair, digamos assim. Em determinado momento questiono a inclusão de Belchior dentro desse universo. A justificativa é que ele não tem qualquer parceria com os irmãos Ferreira. Retratei principalmente a questão da parceria, não só a de assinar uma canção, mas de participar de disco, de gravar. Ednardo, por exemplo, participou do primeiro disco de Clodo, Climério e Clésio, o São Piauí. Foi diretor artístico, algo assim. Parceria a que me refiro é isso. Amelinha também está presente nos discos dos irmãos Ferreira. Esse é o universo. Por isso o Belchior não entrou. Mas voltando à sua questão matemática, por alto eu vou chutar um número: ouvi entre 1.500 e 2.000 músicas. Aliás, nem sei, acho que dá mais.

ZONA SUL – Eleja os 10 discos que integrariam uma discoteca básica dessa sua pesquisa.
MAGNO – Começo por São Piauí, do Clodo, Climério e Clésio. É um dos melhores discos que eu ouvi de todo esse repertório, incluindo todo o universo do Nordeste da década de 70. É um disco fundamental. O Azul e o Encarnado, de Ednardo, é outro disco importante. Há um disco chamado Maraponga, do Ricardo Bezerra, que é sensacional. Tem participações do Hermeto Paschoal, Robertinho de Recife e Amelinha. O primeiro da Amelinha, que é o mais cearense dela, anterior ao Frevo Mulher, o Flor da Paisagem, também tem que entrar nessa lista, é fantástico. Fagner também entra, com certeza, a dúvida é qual deles. O Orós é um disco imprescindível, mas eu elegeria também o Raimundo Fagner, que é o terceiro. Considero melhor que o Manera Fru Fru e o Ave Noturna. Os dois valem a pena. De Rodger e Téti, tem que entrar o Chão Sagrado, um disco fundamental. Da carreira solo da Téti, incluo o disco Equatorial. Outros dois discos que não podem faltar na lista são o Massafera e o Soro, que é Orós de trás pra frente. Este último foi produzido pelo Fagner e inclui um texto do Clodo. É um disco raro. Quem ouvir esses discos terá uma idéia do que aconteceu naquela época. Eu escolhi apenas um Clodo, Climério e Clésio, mas o Chapada do Corisco também é muito importante.

ZONA SUL – Qual a importância da UnB para o encontro dos cearenses e piauienses em Brasília.
MAGNO – A universidade manteve certa dignidade na época da ditadura militar. Ela conseguiu agregar as pessoas num período onde as liberdades de criação estavam muito pouco permitidas, digamos assim. O fato de essas pessoas terem se encontrado dentro da universidade talvez tenha sido o ponto crucial de uma possibilidade de realização coletiva. Parece que há uma incongruência entre o que seja música popular e o universo acadêmico, mas não é verdade. A universidade foi o espaço onde as pessoas puderam dizer o que gostavam e o que não gostavam. Os piauienses e cearenses interagiram nesse ambiente. Climério foi estudante e, posteriormente, professor da UnB. Clodo foi colega de Augusto Pontes. Fausto veio para dar aula de arquitetura e urbanismo. Fagner teve uma passagem relâmpago. As irmãs dele moravam em Brasília. Ele foi aprovado no vestibular para Arquitetura, mas logo em seguida participou do festival do Centro Universitário de Brasília (Ceub), com Cavalo Ferro. Ganhou o terceiro lugar. No mesmo vestibular, a parceria dele com Belchior, Mucuripe, venceu o festival. Fagner ficou entusiasmado e foi embora para o Rio de Janeiro, com Mucuripe nas costas. No Rio, encontrou um terreno propício para mostrar seu trabalho. A trajetória do Fagner e da música Mucuripe, nesse início, foram fundamentais. Na mesma época, Ednardo, Ródger e Téti gravaram Meu corpo, minha embalagem, tudo gasto na viagem. Era o disco do pessoal do Ceará. Fagner desistiu de sua participação. O título é trecho de um poema de Augusto Pontes, que estava também ali envolvido.

ZONA SUL – Esse disco, depois, virou Ednardo e o pessoal do Ceará...
MAGNO – Sim. O próprio Ednardo chama atenção disso. Na verdade era pessoal do Ceará, não havia um destaque para nenhum deles. Ednardo reconhece que depois as gravadoras fizeram uma espécie de marketing meio maluco, por conta da visibilidade que ele teve em função de Pavão Mysteriozo. É um disco que tem Téti, Rodger e Ednardo em pé de igualdade. Também traz compositores cearenses como Ricardo Bezerra e o próprio Fagner, que participa de Cavalo Ferro.



ZONA SUL – Ednardo também estudou na UnB?
MAGNO – Ednardo não chegou a morar em Brasília. Rodger fez mestrado em Física na UnB. Dedé Evangelista foi professor de Física, também na UnB. Ele fez canções importantes nesse período, em parceria com Rodger e Ednardo. Dedé foi professor de Física, Fausto Nilo, de arquitetura. Clodo, Climério e Clésio, todos eles passaram pela Comunicação Social. Mércia, casada com Fausto, já veio formada em Música, depois deu aula na UnB. A UnB foi o espaço de confluência dessa turma.

ZONA SUL – A pesquisa vai virar livro?
MAGNO – Estou pelejando para esse trabalho ser publicado. Uma das editoras para as quais eu enviei, pediu para eu reformular a linguagem. Dei uma reestruturada no texto, já que um texto acadêmico tem pouco apelo público. Outra editora, essa especializada em textos acadêmicos, possivelmente deve editar o trabalho na íntegra. Quero chegar a um público mais vasto, para não ficar restrito à academia. Em um primeiro ímpeto, eu quis democratizar o trabalho e achei que meu texto não estava tão hermético. Pensei que era possível torná-lo mais viável, do ponto de vista do público. Mas como não entendo políticas e estratégias de editoras, fiquei um pouco na mão dessa turma. Estou aguardando para ver se eles aprovam ou não. De qualquer forma, estou correndo para torná-lo mais próximo do público.

ZONA SUL – Como uma editora pode entrar em contato para negociar a publicação do seu livro?
MAGNO – Através do meu email magnocordova@unb.br. Quem preferir pode ligar para meu telefone, aqui em Brasília: (61) 9122-6279.

ZONA SUL – O que você está pesquisando agora?
MAGNO – Recentemente me envolvi com um projeto de uma pessoa lá de Belo Horizonte, aprovado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, e pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais. O trabalho é sobre os 300 anos de música no Brasil. A contrapartida do projeto é sairmos divulgando o seu resultado. Essa divulgação começou pela capital mineira. Já fizemos três palestras em Belo Horizonte e agora vamos visitar algumas cidades do interior do estado de Minas. Também viajaremos por alguns estados. Estaremos em Brasília no início do ano que vem. Também estou pretendendo dar continuidade ao trabalho iniciado em “Rompendo as entranhas do chão”, só que com outro recorte. Já está mais ou menos definido. Vou discutir questões um pouco mais amplas, sem limitar por alguma região. Esse projeto será enviado para o programa de pós-graduação em História, dentro da linha de pesquisa de História Cultural da UnB. Espero me empenhar nele até trazer novos resultados de pesquisa sobre a música.


ZONA SUL – Você também é responsável por alguns dos verbetes do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que pode ser acessado no site http://www.dicionariompb.com.br/
MAGNO – Sim. Um deles foi sobre a Terezinha de Jesus. Foi muito legal ter conseguido a atenção dela, ter me informado a respeito de toda a sua trajetória musical. Coletei o material, redigi e enviei para o Ricardo Cravo Albin, com quem atualmente mantenho contato pessoal. Na época, a mediadora desse meu trabalho dentro do Instituto Cultural Cravo Albin foi Heloísa Tapajós. Era a responsável por esse segmento musical. Nós publicamos informações sobre Clodo, Climério, Clésio e Terezinha. Tenho interesse de fazer um trabalho com o Ricardo aqui em Brasília, envolvendo o Museu Nacional da Imagem e do Som. Já estabeleci contato com algumas pessoas daqui. O projeto está na iminência de ser aprovado. Se for, vamos trabalhar mais concretamente na produção de verbetes e de entrevistas. A intenção é envolver artistas do país inteiro.

ZONA SUL – Por falar em Terezinha de Jesus, o que você diria a respeito da música potiguar?
MAGNO – Vou ser extremamente honesto com você: entre os potiguares, a Terezinha é a pessoa de quem tenho mais afeição e conhecimento a respeito da obra. Tenho todos os discos da Terezinha. Sempre fui apaixonado por sua obra. Recentemente me envolvi com o trabalho da Dona Militana. Foi na execução daquele projeto que falei há poucos instantes, idealizado pela pesquisadora e musicista mineira, Mara de Aquino. O nome do projeto é Cravos na janela. É um livro com um CD encartado e resgata a história da música popular do Brasil, de uma maneira geral. Eu já conhecia os romances da Dona Militana quando Mara incorporou esse repertório no projeto. Outro nome importante do estado, que eu só soube recentemente que ele era potiguar, é K-Ximbinho. Foi uma surpresa, quando eu soube, já que nunca tinha lido dados biográficos dele. Só conhecia sua obra. Não posso deixar de falar também do CD Mares Potiguares, um disco que me impressionou. Adorei tudo, achei lindo. Reconheci algumas músicas que Terezinha havia gravado. Porém, o que mais me impressionou foi o livro que acompanha o disco em um kit feito por Mirabô. Li com muita doçura e carinho. É um documento de uma importância impressionante para entendermos um pouco do que acontecia na música popular na década de 1970. Esse livro de memórias do Mirabô traz informações impressionantes. Estou para mandar um recado para o Mirabô. Em breve vou escrever, com carinho, uma mensagem para ele. O livro, além de ser extremamente importante do ponto de vista documental, é muito prazeroso de se ler. Babal e Tico da Costa são outros potiguares que conheci e também adoro. Pretendo ficar mais atento à música potiguar, até porque uma coisa eu posso garantir: além dessas pessoas que citei, que adoro, a cidade do Nordeste que mais gosto é Natal.

ZONA SUL – A história da MPB está bem contada nos livros disponíveis?
MAGNO – Não. As pessoas contam muito bem, mas apenas um determinado viés. O que está escrito foi bem contado. Mas a música popular ainda tem lacunas sérias que devem ser abordadas. Esse é um papel do historiador, mas é também dos antropólogos, jornalistas e sociólogos. Quem lida hoje com o universo cultural no Brasil tem que tangenciar alguma coisa relativa ao que representa essa manifestação que é a música popular brasileira. É preciso retomarmos algumas dessas lacunas, preenchê-las. A história sempre precisa ser recontada. Pra além do que já foi abordado, há muita coisa que está esquecida e que é necessário a gente trazer a público. É importante para a memória de todos nós. Eu, como mineiro, fui muito questionado por ter pesquisado os músicos do Piauí e do Ceará e não os do Clube da Esquina. Minha resposta é que já tem muita gente trabalhando pelo Clube da Esquina. É preciso saber o que aconteceu e o que acontece, em termos de música, no território brasileiro como um todo.

ZONA SUL – O elepê acabou. O CD, que surgiu como uma mídia que iria durar muito tempo, parece que está acabando também, depois da chegada do MP3. Hoje se consegue baixar da Internet até mais do que é encontrado em lojas de discos. O que você acha de tudo isso e onde fica a questão dos direitos autorais nessa salada toda?
MAGNO – As pessoas, particularmente os artistas, têm que saber lidar com esse movimento. As tecnologias elas surgem, mudam os comportamentos e as atitudes. Do ponto de vista do mercado, talvez seja algo muito grave ou muito bom, na medida em que você desbanca uma estrutura que a princípio monopolizava determinadas posturas. Para o artista eu acho interessante, principalmente se ele encontrar uma maneira de solucionar as questões do direito autoral.

ZONA SUL – Bandas de rock da Europa e dos Estados Unidos estão disponibilizando seus trabalhos, através da Internet, para quem quiser copiar. No site também aparece o número de uma conta bancária para a pessoa depositar o valor referente ao preço que ela acha que vale aquele disco.
MAGNO – Exatamente. E faz sucesso. Estamos testemunhando uma mudança comportamental. Para mim, como público, essa facilidade é ótima. Isso me dá muito conforto. O mercado não é capaz, por exemplo, de bancar para que o público consuma determinado trabalho, no entanto, através da Internet, o público diluído desse artista ainda não consagrado vai se encontrar. Falamos de Babal, por exemplo, agora há pouco. Eu não conhecia todos os discos dele, mas já encontrei alguns na Internet. Para mim, é muito bom. Para o pesquisador, isso é ótimo. Agora, é lógico que tem uma questão de direito autoral que precisa ser equacionada. De qualquer forma, há uma contradição muito grande na medida em que as empresas criam os equipamentos que permitem a reprodução indefinida dos discos e, ao mesmo tempo, querem restringir essas cópias.


(*) - aqui, há um lapso de minha parte, já que Fausto Nilo é natural da cidade de Quixeramobim, no estado do Ceará. Imagino que minha intenção era dizer que ele saiu da capital, Fortaleza, quando se deslocou para o Distrito Federal. E que foi em Brasília que teria composto sua primeira música.